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Quinta, 01 Março 2018 15:48

ENCARCERAMENTO DE MULHERES E SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

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O site do INCT-INEAC reproduz aqui o artigo da antropóloga Katia Sento Sé Mello publicado no site JUSTIFICANDO (http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/27/encarceramento-de-mulheres-e-sistema-de-justica-criminal-brasileiro/). Katia é professora PPGSS/ESS-UFRJ e pesquisadora do INCT-InEAC/UFF.

Encarceramento de mulheres e sistema de justiça criminal brasileiro

20 de fevereiro de 2018. Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), concede Habeas Corpus coletivo com vistas a garantir a prisão domiciliar de mulheres grávidas ou mães de crianças com até 12 anos de idade que cumprem prisão preventiva. Mutirão? Ineditismo? Não exatamente. Muito curiosa é a iniciativa do STF posto que o direito à prisão domiciliar de mulheres em condição de maternidade já está garantido por lei – artigo 318 – no próprio Código de Processo Penal.

Poucos dias antes, uma jovem mulher, Jessica Monteiro, de 24 anos de idade foi levada ao cárcere ainda grávida. Entrou em trabalho de parto no dia seguinte e após dar à luz uma criança, foi transferida com o recém-nascido para a Penitenciária Feminina de Santana no Estado de São Paulo. A dramaticidade do episódio foi publicizada pela mídia nacional, especialmente pelas redes sociais, e imediatamente a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil postulou o direito à prisão domiciliar, concedido no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar da Constituição do Brasil garantir que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, no artigo 5o. do inciso LVI, a negação de prisão domiciliar ou mesmo o desencarceramento de mulheres nas condições de que trata o artigo 318 do Código de Processo Penal, tem sido recorrente a determinadas mulheres.

Maria, mãe de 4 filhos menores de 12 anos de idade, teve a prisão domiciliar negada pelo Superior Tribunal de Justiça de São Paulo em maio de 2017 e foi encarcerada, na época, com um bebê recém-nascido. Acusada de furtar ovos de páscoa e uma bandeja de frango, sua pena foi superior à de outra mulher presa pelo mesmo furto. Na mesma ocasião, Adriana Ancelmo, então esposa do ex-governador do Rio de Janeiro, ao contrário de Maria, teve a sua prisão domiciliar garantida. É notório, ainda, que na Operação Lava Jato alguns dos condenados cumprirão pena menor do que Maria.

Tal descompasso entre um julgamento e outro demonstra a perversa desproporcionalidade de aplicação das penas pelo Direito Penal brasileiro, mas também a perversidade que marca as desigualdades e hierarquias nas relações sociais no Brasil. Os valores e representações simbólicas compartilhadas pelas agências estatais responsáveis pela punição e controle do crime no país são totalmente permeadas por conteúdos de recorte classista, racista, misóginos e morais, sob os quais são construídas e legitimadas a sujeição criminal das parcelas mais vulneráveis do tecido social.

A prisão domiciliar das mulheres gestantes ou mães com filhos de até 12 anos, presas provisoriamente, majoritariamente, não é concebida como direito público subjetivo, mas como benefício que a partir de elementos do caso concreto dependerá da discricionariedade dos magistrados.

Argumenta-se que um dos obstáculos ao reconhecimento da maternidade é a inexistência de documentação pública comprobatória da filiação, como a certidão de nascimento da criança. Ao lado deste, o distanciamento que muitas famílias tomam das mulheres encarceradas e a ausência de endereço, são fatores que, ao olhar de quem julga, reforçam a imagem destas mulheres associadas ao crime e a consequente negação do direito à prisão domiciliar.

 

É urgente registrar que a questão penitenciária constitui um dos mais complexos desafios para os gestores públicos e para o sistema de justiça criminal brasileiro

Uma vez que nos últimos anos o Brasil foi tragicamente alçado ao terceiro lugar no ranking mundial nas taxas de encarceramento, sendo superado somente por países como Estados Unidos e China.

Segundo o levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN/ 2016, o país tem uma população prisional de 727.507 presos, o que corresponde a taxa de cerca de 352,6 presos por 100 mil habitantes, bem como atingiu o percentual de 40,2% de presos provisórios e, o déficit de 368.049 vagas[1]. Houve um crescimento de cerca de 104 mil pessoas encarceradas desde o último relatório em 2014. Desta população, 45.989 são mulheres presas majoritariamente por tráfico de drogas, cerca de 62 % do total, enquanto entre os homens representa cerca de 26%. Entre as mulheres encarceradas, cerca de 74% têm pelo menos um filho.

No que se refere ao aumento exponencial das taxas de encarceramento feminino importante ressalvar que, se por um lado se constituem como uma das principais dimensões das políticas mais genéricas do encarceramento em massa, por outro apresentam aspectos bastante singulares, que explicam o descompasso entre o percentual de aumento entre homens e mulheres nas duas últimas décadas.

A recepção da política de guerra às drogas por setores majoritários das agências responsáveis pela área da segurança pública é inquestionavelmente a grande responsável pelo aumento desmedido do encarceramento feminino no Brasil.

A retórica de combate às drogas acolhida pelo conjunto das instituições da justiça criminal e da segurança pública no Brasil veio customizada por um discurso carregado de estereótipos e juízos morais, que faz com que toda e qualquer normatização, medida ou decisão envolvendo o tema concentre alta carga de punitividade.

A redação do art.33 da Lei 11.343/2006, em virtude da não taxatividade em relação a quantidade de drogas para a configuração do delito de tráfico, por si só conferiu às agências policiais e judiciárias um inédito grau de discricionariedade, legitimando e legalizando a seletividade dos setores sociais mais vulneráveis. Soma-se a isto, a equiparação do delito de tráfico de drogas aos crimes de natureza hedionda, bem como a determinação de penas mais severas a seus autores e o impedimento da realização de vários direitos subjetivos na esfera da execução penal.

Sobre o encarceramento feminino, de um lado encontram-se as narrativas religiosas e humanitárias que privilegiam o direito ao exercício da maternidade, a dor da partida da criança quando completa a idade para deixar a prisão, as emoções que envolvem a separação entre mãe e filho. E de outro, a valoração das trajetórias de vida que supostamente conduziram aquelas mulheres ao sistema prisional, as quais são instrumentalizadas por preceitos jurídicos abstratos e discursos subjetivos e moralistas. É esta que normalmente se sobrepõe por ocasião da ampla maioria dos julgamentos.

Nesse processo, a desconstrução do papel idealizado outorgado à gestação e a maternidade historicamente pela sociedade patriarcal, faz com que a presa gestante/mãe não somente seja desacreditada na sua identidade social, como sofra com os fortes efeitos da fusão entre o evento/crime e a sua autoria.

Surge aqui o perverso efeito das dinâmicas de subjetivação, que acabam por internalizar o crime no sujeito, fazendo com que o carregue como um “espirito” que lhe tomou o corpo e a mente.

Ao lado disso, um dos maiores obstáculos para a concessão do direito previsto no artigo 318 em questão é a força da ideologia e a imperativa dos institutos jurídicos, tais como o banalizado e abstrato conceito da necessidade de garantia ordem pública em detrimento dos direitos e garantias individuais.

A força do conceito de ordem pública nos discursos que fundamentam as decisões dos operadores jurídicos se traduz pela noção de proteção e defesa do Estado contra o cidadão. Contaminado por distintos sentidos o conceito de ordem pública é operado especialmente associado ao exercício do poder do Estado, na maior parte das vezes, vinculado ora ao clamor público pelo fim da violência ora pelo “acautelamento” do meio social.

Christiane Russomano Freire é socióloga e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC)/PUCRS.

Kátia Sento Sé Mello é antropóloga,professora PPGSS/ESS-UFRJ e pesquisadora do INCT-InEAC/UFF. São integrantes do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB.

[1]Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN JUN/2016. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça.

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