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Segunda, 02 Abril 2018 16:38

ENTREVISTA RODRIGO AZEVEDO - AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DEVE SE SOBREPOR AO CLAMOR PUNITIVISTA

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Replicamos aqui a entrevista do sociólogo Rodrigo Azevedo, pesquisador associado e membro do Comitê Gestor do INCT-INEAC, concedida para a Revista do Instituto Humanista Unisinos, publicada no dia 27 de março de 2019 .

Afirmação dos direitos humanos deve se sobrepor ao clamor punitivista

Para Rodrigo Azevedo, a violência em uma sociedade democrática é combatida pela produção de mecanismos policiais e de justiça criminal que atuem dentro da lei, e não por vingança

A sociedade brasileira historicamente é muito violenta. Segmentos da população como índios, negros, mulheres, crianças e idosos há muito tempo são “afetados e vitimizados por práticas de violência bastante disseminadas” por conta de “uma hierarquia social tradicionalmente aceita, quando os homens brancos possuidores de propriedade detinham um poder legitimado sobre todo este conjunto de grupos sociais”, explica o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.

Ao se refletir sobre o fenômeno da violência no Brasil, um dado novo é que há, nas últimas décadas, um grande questionamento à legitimidade dessa hierarquia social tradicional, afirma Azevedo em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Em consequência, “diversos grupos sociais vitimizados e historicamente excluídos ou marginalizados começaram a produzir uma nova subjetividade, começaram a se mobilizar no sentido de enfrentar esta situação histórica, e isso levou a um profundo questionamento dessas relações instituídas no Brasil”. Outro elemento novo e importante, na análise do pesquisador, “é a disseminação em áreas de periferia, geralmente desassistidas da presença do Estado e de serviços públicos, de uma cultura de violência”.

A sociedade brasileira é muito violenta, mas “a polícia historicamente é pouco preparada para atuar em contextos democráticos, utilizando a violência de forma excessiva e negociando seu poder de sujeição criminal”, avalia Azevedo. “Boa parte da violência que acomete a história do Brasil foi praticada pelo Estado.” No entendimento do pesquisador, “desde a sua origem, o Estado vem para impor uma ordem e obrigar a sociedade a se curvar a esta ordem que interessa a poucos, a apenas uma elite”.

Azevedo observa “o crescimento de uma demanda social punitiva que se relaciona com o aumento da violência, com a sensação de insegurança e com a falta de políticas de segurança efetivas”. Em consequência, boa parte da sociedade adere “ao discurso do chamado populismo punitivo, ou seja, a ideia de que o puro e simples endurecimento penal, mesmo nas condições precárias do nosso sistema carcerário, poderia ser um mecanismo de contenção da criminalidade”. O sistema político, pressionado, responde com o “aumento de penas e a relativização de direitos e garantias processuais, o que incrementa o encarceramento e, muito especificamente, o aprisionamento provisório”.

O cenário é desalentador, porque “quem sofre cotidianamente com o crescimento da violência e com a disseminação da criminalidade acaba desacreditando do poder público e aderindo ao discurso de que é preciso que cada um tenha a sua arma para garantir a autodefesa”. Azevedo, no entanto, ressalva que “a única possibilidade de se enfrentar a violência e o crime em uma sociedade democrática é pela afirmação dos direitos humanos e pela produção de mecanismos policiais, e especialmente de justiça criminal, que atuem dentro da lei, que atuem de forma profissional, aplicando as regras de uma forma universal”.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Realizou estágio pós-doutoral em Criminologia na Universitat Pompeu Fabra e na Universidade de Ottawa. É professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Lidera o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal – GPESC e integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É pesquisador associado e membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT-INEAC.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que há de novo na caracterização da violência no Brasil?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – A sociedade brasileira historicamente é muito violenta. A história social do Brasil pode ser contada como a história social da violência. A colonização e o massacre da população indígena, a questão da escravidão e o tratamento dado à população negra, a relação entre a sociedade de uma maneira geral com crianças, mulheres e idosos – tradicionalmente esses setores da população têm sido afetados e vitimizados por práticas de violência bastante disseminadas. No entanto, quando essas relações estavam vinculadas a uma hierarquia social tradicionalmente aceita, quando os homens brancos possuidores de propriedade detinham um poder legitimado sobre todo este conjunto de grupos sociais, a violência podia ter um caráter muito mais simbólico do que propriamente físico, embora a violência física estivesse sempre presente, principalmente em situações de conflito.

O dado novo no Brasil, nas últimas décadas, é que há um grande questionamento à legitimidade dessa hierarquia social tradicional. Diversos grupos sociais vitimizados e historicamente excluídos ou marginalizados começaram a produzir uma nova subjetividade, começaram a se mobilizar no sentido de enfrentar esta situação histórica, e isso levou a um profundo questionamento dessas relações instituídas no Brasil.

O próprio processo de democratização, a partir dos anos 1980, revela uma sociedade que busca romper com padrões tradicionais de dominação, de exclusão e de violência, que busca colocar na esfera da cidadania setores sociais historicamente excluídos. Talvez o que estejamos vivenciando no momento é ainda um bloqueio a esta demanda por cidadania, por afirmação de direitos, que chegou a um patamar que passou a encontrar resistência cada vez maior das elites favorecidas pelo sistema tradicionalmente implantado.

Por outro lado, temos um outro elemento novo importante que é a disseminação em áreas de periferia, geralmente desassistidas da presença do Estado e de serviços públicos, de uma cultura de violência. Nas periferias urbanas, até pela presença do tráfico de drogas e do armamento, acabou surgindo uma cultura juvenil vinculada a manifestações simbólicas de uso da força e da violência como afirmação identitária, o que conflui para a questão carcerária, na medida em que esses setores sociais são alvo do controle punitivo, colocados em presídios superlotados e dominados internamente por esses mesmos grupos. Isso acabou produzindo essa cultura que alguns chamam de masculinidade violenta, que se dissemina e se relaciona com o poder público, especialmente por meio das polícias.

A polícia brasileira historicamente é pouco preparada para atuar em contextos democráticos, utilizando a violência de forma excessiva e negociando seu poder de sujeição criminal, então tudo isso gera uma situação em que se tornam frequentes disputas de territórios e confrontos armados como forma de produção identitária.

IHU On-Line – A violência é um traço do Estado brasileiro?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Boa parte da violência que acomete a história do Brasil foi praticada pelo Estado. O Estado brasileiro se constitui não por uma demanda social, de construção de instituições que garantam o exercício da cidadania. Desde a sua origem, o Estado vem para impor uma ordem e obrigar a sociedade a se curvar a esta ordem que interessa a poucos, a apenas uma elite. Isso produz instituições, tradições, uma cultura institucional autoritária, em que o poder público e seus integrantes não se colocam no papel de servidores, mas muito mais no papel de detentores do poder, e exercem esse poder para excluir demandas sociais, para suprimir conflitos que são vistos como atentatórios à própria ordem jurídica e social.

No âmbito da segurança pública, muitas vezes já foi utilizada, e continua sendo, a ideia de manutenção da ordem pública em detrimento da prestação de serviços de segurança que trabalhem na perspectiva da administração de conflitos, e essa é a tradição do Estado brasileiro. As instituições de justiça e de segurança tradicionalmente foram instrumentalizadas para cumprirem esse papel de manutenção de uma ordem social injusta e desigual, e não para dar vazão e equacionar as demandas sociais por reconhecimento e cidadania.

IHU On-Line – O senhor destacou que nos últimos anos os jovens da periferia, em sua afirmação identitária, tomam como valor a questão da violência e do armamento. O fato de o Brasil ser um país profundamente machista agrava a situação?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Com certeza, por isso essa caracterização como uma cultura da masculinidade violenta. O patriarcalismo e a ideia do poder masculino – mesmo que questionados e cada vez mais colocados em xeque, especialmente pelo movimento feminista – ainda estão muito presentes em diferentes contextos sociais, sem distinção de classe e de renda. E talvez até pela crise dessa masculinidade o elemento violência acaba se colocando como uma forma de manutenção de uma identidade que, embora questionada, ainda tem muita força, não apenas nas periferias urbanas, mas inclusive em outros setores sociais.

Isso agrava problemas que se relacionam com a questão do armamento, o confronto violento, a honra, o acerto de contas e disputas que envolvem inclusive relações afetivas, chegando ao tema da violência contra a mulher, a violência doméstica. Tudo isso acaba sendo exacerbado, apesar de todas as mobilizações, inclusive da mudança legal no sentido de uma maior preocupação e criminalização de condutas ligadas a práticas tradicionalmente aceitas. Neste contexto de uma crise da identidade masculina, desse poder patriarcal tradicionalmente instituído, tudo isso resulta que a violência surja como um mecanismo de reação a essa mudança social.

IHU On-Line – A maneira como se deu a tardia abolição da escravatura no Brasil e o racismo estrutural que persiste explicam por que a população negra é mais vulnerável a diferentes formas de violência?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Não há dúvida de que a forma como se deu a abolição da escravatura no Brasil acabou produzindo grandes contingentes populacionais marginalizados vinculados, evidentemente, à população negra. No entanto, a questão da escravidão não foi exclusividade brasileira. Vários países tiveram situações similares, mas muitos acabaram de alguma forma enfrentando esse processo de transição de uma situação como aquela para um contexto em que a questão da cor da pele não tem mais tanta influência sobre os direitos de cidadania.

A própria sociedade norte-americana, a partir do movimento dos direitos civis, somente nos anos 1960 começa a enfrentar essa questão de uma forma mais direta, mas, de qualquer maneira, de lá para cá há muitos avanços no sentido de garantia de direitos e de igualdade, não importando qual seja a etnia.

No Brasil, todo o debate sobre democracia racial e sobre o fato de que nós seríamos uma sociedade miscigenada – que marca inclusive boa parte da produção das ciências sociais sobre este tema durante um grande período – acabou encobrindo esta situação. Levamos muito tempo para enfrentar o problema de uma forma mais direta por meio de políticas de ação afirmativa, que pudessem compensar esta desigualdade original que nunca foi enfrentada e que produziu essa barreira a esse grupo étnico de ter acesso tanto a direitos de cidadania quanto a possibilidades de ascensão social.

Neste momento, este tema se coloca de uma forma mais importante na pauta política do país porque há uma mobilização do movimento negro para que as conquistas obtidas na última década, especialmente, sejam consolidadas, para que possamos ter de fato o enfrentamento dessa mazela social que ainda marca a sociedade brasileira e tem sido reavivada pela questão do racismo.

Cada vez parece mais claro que o racismo ainda está bastante presente e começa a ser objeto de manifestações discursivas que há bastante tempo não se faziam presentes de forma tão explícita no espaço público. Hoje, no entanto, inclusive pela disseminação nas redes sociais, acabaram surgindo bolsões de grupos racistas que sustentam uma ideologia de supremacia branca, por exemplo. Esses grupos, não apenas no Brasil, mas em outros contextos, têm se manifestado e demonstrado o quanto o problema é ainda bastante presente e precisa ser enfrentado tanto por políticas de ação afirmativa, quanto pela necessária criminalização do racismo nas suas diferentes formas de manifestação.

IHU On-Line – Por que ocorre o encarceramento em massa e qual o efeito disso?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O tema do encarceramento traz alguns elementos novos no contexto contemporâneo. Desde os anos 1980, verifica-se um processo de superencarceramento que começa no contexto norte-americano, a partir da política de guerra às drogas e de toda uma mudança social que acontece a partir da implantação do programa neoliberal, com o enxugamento de gastos sociais, corte de direitos sociais e ampliação da utilização do sistema penal para contenção de determinadas populações marginalizadas, o que afetou muito especialmente a população negra.

No Brasil, esse processo começa nos anos 1990. Nas últimas décadas, tivemos um incremento muito grande das taxas de encarceramento no país, que hoje está entre os quatro que mais encarceram no mundo e tem entre eles a maior taxa de crescimento do encarceramento na última década. Isso, em grande medida, em virtude da lei de drogas (Lei 11.343/2006), em que pese a ideia de que pudesse ter avançado no sentido de uma despenalização do usuário, mas que acabou levando a um endurecimento em relação ao varejo da droga. Os pequenos vendedores são penalizados de forma dura e constituem hoje, na população prisional masculina, em torno de 30% dos presos e, na feminina, em torno de 70%.

Além disso, temos o crescimento de uma demanda social punitiva que se relaciona com o aumento da violência, com a sensação de insegurança e com a falta de políticas de segurança efetivas, que não são implementadas e que levam boa parte da sociedade a aderir ao discurso do chamado populismo punitivo, ou seja, a ideia de que o puro e simples endurecimento penal, mesmo nas condições precárias do nosso sistema carcerário, poderia ser um mecanismo de contenção da criminalidade.

Isso leva a uma resposta do sistema político que é o aumento de penas e a relativização de direitos e garantias processuais, o que incrementa o encarceramento e, muito especificamente, o aprisionamento provisório. Em torno de 40% das pessoas presas ainda não foram julgadas, mas são mantidas nesta condição porque o sistema é moroso e muitas vezes incapaz de produzir os elementos probatórios que garantam uma condenação criminal. Mas, dependendo do perfil do acusado, ele é mantido já em situação de encarceramento durante todo o processo, o que agrava a situação de superlotação.

IHU On-Line – Os dividendos eleitorais do tema segurança pública são tão relevantes que um dos motivos atribuídos à intervenção no Rio de Janeiro foi a busca de um fôlego maior para uma eventual candidatura de Michel Temer à presidência.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Com certeza. O governo se encontrava em uma situação de grande descontentamento social, com alta rejeição por parte da opinião pública (taxas de aprovação em torno de 5%) e manifestações cada vez mais amplas contra o corte de direitos trabalhistas e a reforma da Previdência – ações propostas por um governo que carece de legitimidade eleitoral, além de toda a situação envolvendo denúncias de práticas criminosas por parte tanto do presidente da República quanto de vários ministros.

A intervenção no Rio de Janeiro aparece como uma tábua de salvação, uma boia em ano eleitoral para que haja uma mudança de orientação da agenda política em direção àquilo que é a principal demanda social, que é a demanda por segurança. Fazendo isso, o governo – que enfrentava dificuldade para sua legitimação social – deixa de lado uma agenda bastante criticada, praticamente inviabilizada no Congresso em ano eleitoral, e adota outra que atende a uma demanda social.

A princípio, uma intervenção federal em um estado federativo não tem caráter militar. Não há previsão de uma intervenção militar na Constituição Brasileira. Quando a União intervém em um estado, seja de uma forma mais integral, seja especificamente na área da segurança pública, é uma intervenção civil por parte do governo federal para atender a uma situação de crise. No entanto, ao dar um papel de interventor a um general, comandante das Forças Armadas na região Sudeste, e de alguma maneira vincular esta intervenção a uma presença maior das Forças Armadas na operação da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, o governo estabelece um caráter militar para esta intervenção.

É algo extremamente grave, tanto pela inadequação da atuação das Forças Armadas neste âmbito, quanto pela histórico delas de ingerência sobre a sociedade civil e o sistema político. Isso reaviva o fantasma de um endurecimento do regime por meio da presença cada vez maior das Forças Armadas em setores que não são de sua competência, sua atribuição, e que acabam sofrendo uma tutela por parte dessas forças.

A intervenção gera desconforto dentro do próprio meio militar. Temos acompanhado manifestações que denotam a existência de uma divisão dentro das Forças Armadas. Há um setor, que se poderia chamar de mais profissional, que questiona o papel do Exército neste âmbito e considera a possível perda de apoio e de legitimidade social duramente reconquistados nos últimos 30 anos de democracia. Outro setor tem produzido uma nova doutrina de segurança nacional que vincula o papel das Forças Armadas ao combate à criminalidade e combina isso com o combate a movimentos sociais reivindicatórios. Isso apresenta uma nova roupagem, digamos assim, para uma presença das Forças Armadas intervindo na vida social e política brasileira.

IHU On-Line – O que caracteriza o crime organizado e as facções? E por que elas não estão mais restritas a São Paulo e Rio de Janeiro?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – É importante fazer uma distinção desses dois conceitos. As facções criminais no Brasil são uma denominação que se generalizou no debate a respeito dos grupos ligados ao tráfico de drogas e que ganharam projeção e consolidação a partir, justamente, da superlotação carcerária e do domínio desses grupos dentro do ambiente prisional. A presença de grupos ligados ao mercado da droga no Brasil data do final dos anos 1970, início dos 1980, quando o comércio se profissionaliza e a cocaína especialmente produziu um reforço do poderio econômico de quem vendia a droga. Isso, vinculado ao contexto da ditadura e da vinculação de grupos criminosos e de dissidentes políticos em determinados ambientes carcerários, acabou produzindo no Rio de Janeiro uma primeira grande facção, que foi a Falange Vermelha, depois tornada Comando Vermelho . Nos anos 1980, ela se desagrega, produzindo outras facções e uma disputa que se mantém até hoje nas favelas cariocas, em torno desse mercado. A inexistência de um monopólio do comércio da droga no varejo acaba levando à presença muito constante da violência, do armamento, da disputa de território e assim por diante.

Em São Paulo, a situação se tornou diferente porque uma facção, o Primeiro Comando da Capital - PCC – produzido a partir do massacre do Carandiru como forma de reação dos presos à violência do Estado –, por uma série de mecanismos identitários e também de funcionamento, acabou adquirindo um monopólio sobre o varejo da droga em todo o estado. O PCC adquiriu um poderio que não é comparável ao que havia antes da sua criação e do seu crescimento. Talvez por isso, cada vez mais se vincula essa ideia de facções criminais com a ideia de crime organizado. No entanto, essa criminalidade do varejo da droga é muito pouco organizada, é muito frágil, muito móvel e volátil. Existem várias disputas, com a grande exceção do PCC, que conseguiu estabilizar e consolidar um domínio durante essas últimas décadas no estado de São Paulo e começa a se disseminar também para outros estados, inclusive tendo hoje o controle de algumas rotas internacionais da droga.

Crime organizado é outra coisa. Trata-se de um nível de criminalidade que envolve geralmente o poder público, ou seja, que tem na sua base a participação de pessoas ligadas às próprias forças de segurança pública, às polícias, ao sistema político ou ao meio empresarial. O crime organizado, nesse nível, envolve a comercialização de mercadorias ilícitas que vão muito além da droga no varejo. E aí teríamos que falar do tráfico internacional de drogas e de armas, mas teríamos que falar também da subtração de dinheiro público por licitação fraudulenta, de desvios praticados nos mais diferentes âmbitos da economia formal que acabam também dando origem a uma série de processos vinculados à lavagem desse dinheiro obtido de forma ilícita, e isso também se conecta à circulação do capital em nível internacional.

O conceito de crime organizado está muito mais vinculado a esse tipo de práticas que ficam menos sujeitas ao controle público e à própria opinião pública, pois não têm tanta visibilidade, não têm um caráter tão midiático quanto a violência cotidiana praticada por esses grupos que dominam áreas de periferia.

De alguma forma, a confusão desses dois conceitos acaba levando a que se acredite que, no combate ao crime, a prioridade seria o combate ao pobre, esse indivíduo que está vinculado às facções nas periferias urbanas, pratica o varejo da droga, mas que é apenas a ponta de uma grande estrutura criminal que envolve todos esses setores que, muitas vezes, ficam absolutamente à margem do poder punitivo e do sistema penal.

IHU On-Line – No Rio Grande do Sul, por que cresceu o espaço e o poder das facções?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O Rio Grande do Sul tradicionalmente tem uma dinâmica própria das facções criminais, tanto que até hoje o PCC não conseguiu estabelecer no estado uma base mais sólida, ao contrário do que acontece em outros lugares. Há grupos que se rivalizam especialmente na Região Metropolitana, e eles têm o seu ponto de aglutinação no Presídio Central de Porto Alegre, na hoje chamada Cadeia Pública de Porto Alegre, onde muitas vezes tiveram a possibilidade de negociar com os gestores do sistema carcerário e com a própria Polícia Militar, que há bastante tempo administra o presídio. Já houve relatos de que determinados grupos foram beneficiados ou favorecidos pela administração prisional em detrimento de outros que se colocavam nessa disputa.

Nos últimos anos, houve o surgimento de um novo agrupamento ligado ao comércio ilegal da droga, que se caracterizou pela utilização da violência de forma mais exacerbada do que em períodos anteriores, invadindo áreas que eram de outras facções na região da Grande Porto Alegre. Talvez seja isso que tenha levado a esta situação de aumento bastante considerável das taxas de homicídio no estado, especialmente na Região Metropolitana, e a um descontrole do poder público sobre este contexto de disputa de território entre facções.

Há, portanto, uma situação de disputa, de desequilíbrio, em que o poder público e as polícias combatem determinados grupos e até prendem líderes de certas facções em áreas específicas, deixando esses territórios à mercê da entrada de grupos rivais. Quando essas operações acontecem, muitas vezes se verifica aumento da violência.

Tudo isso coloca em questão o próprio modelo de enfrentamento da questão da droga. O Rio Grande do Sul é um exemplo de como esta política de guerra às drogas e de criminalização do varejo acaba levando apenas a um efeito prático, que é a superlotação carcerária. O estado, em três anos, passou de 27 mil para 36 mil presos no sistema prisional. Talvez seja o que mais tem crescido em termos de taxas de encarceramento, sem que haja investimento em aumento de vagas e na melhoria das condições carcerárias, deixando essa massa à mercê justamente dos grupos que dominam o ambiente carcerário e que praticam as suas atividades fora dos muros da prisão também.

IHU On-Line – O combate ao homicídio dever ser prioridade? Por quê?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Diante da situação da segurança pública no Brasil e do fato de que o poder público tem limitações muito sérias, tanto em termos orçamentários, como em termos de planejamento para intervir na criminalidade, evidentemente que nós defendemos que se definam prioridades. No segundo governo Dilma , ela – fazendo a autocrítica da falta de política de segurança e do papel mais efetivo da União nesta área no primeiro governo –, por meio do ministro da Justiça, compôs um grupo de especialistas que foram chamados a Brasília para realizar este debate. Afinal de contas, qual seria a possibilidade de uma intervenção federal nesta área e qual seria o foco dessa intervenção?

Nós todos que participamos desse processo fomos unânimes em defender que fosse dada prioridade à questão da criminalidade violenta, especificamente os homicídios. Elaborou-se uma proposta de pacto nacional pela redução dos homicídios, com políticas e metas estabelecidas para serem implementadas ao longo do tempo. Com o processo de impeachment e com o enfraquecimento do governo federal, evidentemente, não se teve condições de implementar.

Com o governo Temer , esse plano simplesmente foi abandonado e, no seu lugar, quase nada foi apresentado, a não ser um conjunto de slides, pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes , que muito pouco tinha de conteúdo e até hoje não se sabe o que de fato foi implementado. Agora o governo vem novamente, tanto com a questão da intervenção no Rio de Janeiro quanto com a ideia de criação de um Ministério da Segurança Pública, querendo se apropriar desta pauta, desta agenda em ano eleitoral, mas tanto uma proposta quanto a outra são bastante questionáveis.

Não sabemos o que significa esta intervenção federal, qual é a sua finalidade, seu foco, assim como não se sabe qual é a viabilidade da criação de um Ministério da Segurança Pública em um último ano de governo, quais seriam suas atribuições, seu papel e sua estrutura. Carecemos de uma política efetiva de enfrentamento do problema dos homicídios que atingem prioritariamente os moradores de periferia, pobres, negros, que são as vítimas dessa situação de falta de políticas públicas nessa área, e isso leva à exacerbação do chamado fascismo social, desse discurso punitivo, muito vinculado à ideia de que bandido bom é bandido morto, mas bastante distante de propostas concretas para o enfrentamento do problema.

IHU On-Line – Qual a política mais adequada em relação às drogas?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Se existe um consenso entre os especialistas da área, é de que a nossa política de drogas está falida. Não temos dúvida. O que há é um aumento do encarceramento de pessoas ligadas ao varejo da droga, que superlotam prisões e reforçam o domínio das facções criminais. Isso, no entanto, não afeta o comércio da droga e não tem nenhum impacto sobre a demanda de consumo.

Seria preciso repensar essa política. Uma primeira medida viável, factível e que poderia ter impacto concreto nesse contexto seria destravar no Supremo Tribunal Federal a tramitação do processo de descriminalização do uso de drogas no Brasil, que é a tendência que vinha sendo apresentada pelos votos do relator e dos que o seguiram, até que foi feito um pedido de vistas pelo ministro Alexandre de Moraes. Até hoje esse processo se encontra engavetado. Se fosse adiante e o Supremo se manifestasse no sentido da descriminalização do usuário de forma definitiva, isso seria um grande avanço, desde que seguido por uma grande tendência manifestada nos votos do Supremo que é o estabelecimento de um critério objetivo para distinguir o usuário do traficante.

Da forma como está colocada na lei, a situação é absolutamente subjetiva, pois o juiz define por critérios que têm a ver com o perfil do acusado, e isso leva à criminalização da pobreza. O que se pretende com essa ação no Supremo Tribunal Federal é que se estabeleça uma quantidade mínima que caracterize o tráfico. E, a partir disso, todos os que forem presos com quantidades menores do que essa não poderiam receber a qualificação de traficantes.

Esta é a possibilidade mais concreta de que a questão avance no Brasil no sentido de uma nova política de drogas que deixe de lado a intervenção penal e avance em políticas de redução de danos, de contenção do consumo por meio de campanhas educativas, de conscientização, sem criminalização.

Um passo seguinte talvez seja a regulamentação do mercado das drogas, tal como aconteceu no Uruguai em relação à maconha, tal como tem acontecido em outros países, mesmo em alguns estados dos Estados Unidos e também na Europa. Esta é a tendência cada vez maior de participação do poder público neste contexto não mais por meio do sistema penal, mas por meio de saúde pública e de mecanismos que garantam que o mercado da droga seja retirado da ilegalidade, com isso enfraquecendo as estruturas criadas em torno da demanda pela droga.

IHU On-Line – Qual o papel do Judiciário em uma sociedade profundamente violenta?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O papel fundamental do Poder Judiciário, na sociedade brasileira e em um contexto de normalidade democrática e constitucional, é garantir a vigência das leis, ou seja, no âmbito do processo penal, a vigência dos direitos e das garantias fundamentais.

O sistema penal, e especialmente a justiça criminal, não são mecanismos adequados de prevenção ao crime. Em nenhum lugar do mundo o sistema penal cumpre este papel, pelo contrário, ele é um mecanismo de controle justamente do sistema punitivo, por meio de regras que devem orientar a ação do poder público, desde a polícia até a execução da pena.

O papel fundamental e prioritário do Judiciário é garantir a vigência desse sistema de garantias, o que não é nada fácil, especialmente em países como o Brasil, com uma tradição autoritária e inquisitorial, em que o Estado, por meio dos seus órgãos de controle penal, exorbita de suas atribuições, se excede no uso da violência, produz provas por meios ilícitos e tudo isso acaba levando a uma situação de absoluta insegurança jurídica que vitimiza o cidadão, tenha ele praticado ou não delitos. Em democracia, direitos e garantias devem ser assegurados, caso contrário estamos no âmbito de um regime autoritário. O papel do Judiciário fundamentalmente é este.

No Brasil, lamentavelmente, temos acompanhado a existência de práticas judiciais desvinculadas dessa preocupação com os direitos e garantias, que cada vez mais aderem à demanda social por punição, colocando juízes e tribunais a serviço de uma suposta segurança pública que, para que seja efetiva, deve abrir mão justamente da vigência das regras constitucionais e processuais penais. Temos a figura do juiz inquisidor, do juiz xerife, do juiz que não apenas recebe as partes para realizar o seu papel de julgador, mas acaba assumindo uma função de combate ao crime. Esse é o pior cenário, a pior possibilidade que se tem em relação ao Poder Judiciário. Lamentavelmente, isso acabou derivando para a aceitação cada vez mais generalizada por operadores jurídicos ligados tanto ao Judiciário, quanto ao Ministério Público, inclusive em virtude do efeito da Operação Lava Jato e de todo o discurso midiático de combate à corrupção no Brasil. Esses expedientes estão desconectados da ordem jurídica constitucional e cada vez mais justificados e legitimados pelo discurso de combate ao crime. 

 

A entrevista está disponível originalmente no endereço - http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7199-afirmacao-dos-direitos-huma...

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