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Terça, 07 Janeiro 2020 16:41

A cisma do Brasil e o cisma do mundo

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O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo "A cisma do Brasil e o cisma do mundo", do professor e antropólogo Fábio Reis Mota, pesquisador vinculado ao INCT/INEAC, publicado dia 6 de janeiro de 2020, no blog Ciência e Matemática, do jornal O GLOBO - https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/cisma-do-brasil-e-o-cisma-do-mundo.html

 

 

A cisma do Brasil e o cisma do mundo

 

Fabio Reis Mota

Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF e Pesquisador do INCT InEAC-UFF

 

O Brasil é produto de uma cisma. Segundo consta em nossa memória e narrativa de mito de fundação, Pedro Álvares Cabral, um dos viajantes portugueses que colonizou violentamente civilizações originárias inteiras das Américas e alhures, cismou que as Índias ficavam nessa terra, onde “tem palmeiras onde canta o sabiá”.

 

Cismaram que os índios não tinham alma, por isso, os dizimaram; cismaram que os negros africanos eram semoventes e adequados ao trabalho manual duro, bem como inumano, e os escravizaram. Cismamos que éramos a Europa, o Rio Paris e a Modernidade o nosso futuro. Tudo foi o resultado de uma cisma e, assim, permanecemos cismados.

A polícia age cismada, alvejando cidadãos em áreas de moradias desprivilegiadas, pelo simples fato de portarem uma cor de pele escura ou até por andarem com guarda-chuva em dias de tempestades; o “cidadão de bem” cisma que o policial é o seu serviçal e deve seguir seus desejos e ditames quando estiver na rua. O funcionário público de uma repartição cisma que você não deve obter o documento solicitado, portanto, lança mão de uma normativa qualquer, a fim de lhe negar o acesso a um direito ou a um benefício. O Estado cisma que somos, por natureza, hipossuficientes, ao nos tutelar em diferentes níveis da vida, pois cisma sempre conosco, não obstante possuirmos carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento, certidão de casamento, título de eleitor, CNH, etc., cisma tanto que, com a obrigação de reconhecer nossa firma em um cartório, por exemplo, em várias circunstâncias, pagamos uma boa grana para tal.

No Brasil, podemos acusar as pessoas sem prova, levando-as para a cadeia pela convicção (ou cisma) apenas. Cismamos que o outro é machista, racista, homofóbico, intolerante, xenófobo, a partir de critérios unilateralmente elaborados por parte dos que ensimesmamos outros em suas cápsulas classificatórias, independentemente de os elementos factuais subsidiarem a construção de uma cisma, onde o outro é o que você projeta sobre ele. Ou seja, a cisma está em todos os cantos do Brasil, em diferentes setores, na “esquerda” e na “direita” de nossa estrada de formação do que somos contemporaneamente. A cisma se encontra nas raízes do Brasil. Ademais, ela parece também se difundir pelos 4 cantos do mundo.

Cabe dizer ao leitor que a cisma difere, substantivamente, da desconfiança, pois a raiz desta é liberal. A desconfiança, como um dispositivo cognitivo e moral, nos moldes como a conhecemos, foi confeccionada no mundo liberal –ordenado pela primazia da razão, da centralidade dos direitos individuais – em um contexto no qual o reconhecimento do outro se torna imperativo para a conformação do reconhecimento de si mesmo.

No Antigo Regime, a confiança era externa ao indivíduo, ou seja, as respostas estavam fora das pessoas, haja vista tudo provir das mãos de um “Ser onipresente”. Já no liberalismo, a confiança em si – com a emergência da noção de self – resulta na confecção de um espaço público, no qual o binômio confiança-desconfiança desempenha um papel central ao desenvolvimento do capitalismo e dos sistemas democráticos dos países ocidentais. O liberal Adam Smith, em “Riqueza das Nações”, chama atenção para a centralidade da confiança – trust –no mercado em uma economia liberal. O filósofo Jean Jacques-Rosseau desenvolve uma compreensão da política, por intermédio da representação da voz dos cidadãos, que concede a alguém a legitimidade de falar em nome da vontade geral e do bem comum. Confiamos ao outro a legitimidade de falar por um coletivo. Nas grandes metrópoles da vida urbana, vivemos sob o abrigo de grandes edifícios, nos quais devemos coabitar com aqueles que não conhecemos, sem saber quem e o que são. Durante todo o século XX, lutamos com o intuito de firmar esse modo de vida humana, assentado na tensa relação entre confiança-desconfiança e coexistência-intolerância.

Contudo, adentrando o século XXI, nós nos deparamos com eventos e novas formas de pensamento que vieram solapar o regime da confiança e conceder lugar ao regime da cisma. A destruição das torres gêmeas nos EUA inaugura uma era face à diluição de direitos civis de cidadãos dos EUA, de origem muçulmana sujeitados a uma política de encarceramento, pela simples cisma de serem esses potenciais terroristas. A prisão de Guantánamo está aí para contar parte dessa nova história. O atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo, na suntuosa e internacional Paris, bateu no coração republicano francês em cheio, já ferido pelas mágoas das guerras de descolonização e pelo complexo processo de assimilação dos imigrantes ao corpus republicano. Isso ao tornar evidente que nacionais e cidadãos franceses podiam revelar suas inquietações fora do ambiente argumentativo e fazer uso do recurso da linguagem da violência, com o fito de eliminar o que cismamos. Dessa cisma, gerou-se uma outra: a do Governo contra os imigrantes muçulmanos e africanos, por meio de políticas de segurança pública hostis a estes grupos e de uma expansão da xenofobia e do racismo, perpetradas por cidadãos franceses contra outros cidadãos igualmente franceses, porém de origem diversa.

Nossas pesquisas de campo, ordenadas pelo método etnográfico, apontam que estamos diante de um mundo de ensimesmamento: por intermédio de instrumentos da rede e da internet; da emergência de movimentos terraplanistas e contrários à Ciência; dos movimentos de extrema direita que emergem ao longo do planeta, como no Brasil e nos EUA, representados pelas figuras de chefes de Estado inclusive; da produção de critérios de relacionamentos interpessoais, baseados no ensimesmamento, a partir das políticas de reivindicação de identidades diferenciadas; do fechamento de fronteiras nacionais contra os estrangeiros na Europa, nos EUA e na América Latina, bem como com o fortalecimento de ideários racistas e xenófobos; de massacres, terrorismo, etc. Tudo o que foi mencionado abrange os elementos constituintes dessa nova química social elaborada pela cisma moderna.A cisma nesses moldes, consequentemente, resulta no cisma, nessa conformação de arquipélagos humanos, cujas rupturas tectônicas criam separações eternas e irreversíveis.

Esse diagnóstico, elaborado no ambiente de uma Universidade Pública, aponta - no ano em que celebramos nosso ensimesmamento à la brasileira (ritualizado nas últimas eleições presidenciais) -, que enquanto no Brasil a tradição inquisitorial, analisado por Roberto Kant de Lima, produz uma naturalização da suspeição sistemática do Estado contra os cidadãos e destes contra si mesmos, nas sociedades capitalistas burguesas, como a francesa ou americana, por exemplo, o espraiamento nas dinâmicas sociais da suspeição sistemática produz uma dissonância cognitiva severa aos indivíduos preparados a agir a partir de elementos factuais, formulados pela argumentação e sob os critérios de justificação que tenham generalidade e legitimidade no espaço público.

A cisma do Brasil pode levar ao cisma do mundo?

Ler 4728 vezes Última modificação em Terça, 07 Janeiro 2020 17:05
Claúdio Salles

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