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Segunda, 02 Março 2020 14:50

Qual a reforma necessária da Administração Pública?

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QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?
O Blog Ciência e Matemática publicou nessa segunda-feira, dia 2 de março de 2020, o artigo QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?, escrito pelos antropólogos Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br).
Confira o artigo no link https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/qual-reforma-necessaria-da-administracao-publica.html  ou abaixo .

REFORMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Qual a reforma necessária da Administração Pública?

 

02/03/2020 

Ultimamente temos sido bombardeados pelo governo e pela imprensa sobre a necessidade de reformar o serviço público no Brasil. Principalmente, retirar dos servidores públicos as garantias conquistadas desde a época em que se instituiu um serviço público profissional entre nós, no governo Vargas. Garantias essas que se justificavam por serem consideradas indispensáveis ao desenvolvimento e preservação de uma memória burocrática acerca dos procedimentos técnicos e, por conseguinte, garantia da continuidade da promoção de serviços ao público, independente da vontade dos governos. Episódios recentes envolvendo o funcionamento dos Ministérios da Casa Civil, e da Educação, no governo federal, ou as demissões de engenheiros na CEDAE, promovidas pelo governo fluminense, deram seus testemunhos acerca dos riscos que representam a remoção de tais garantias, mediante a instituição da chamada “dança das cadeiras”.

Por outro lado, é interessante notar que a discussão, endossada por alguns governadores num artigo de opinião publicado recentemente no Globo, onde parecem associar a maior competência do serviço prestado à precariedade da permanência do servidor em seu cargo, parece ignorar que contemporaneamente a maioria dos servidores públicos é admitida através de concurso público, sendo muito menor o número de “cargos de confiança”, para os quais a nomeação é livre ou, pelo menos, não requer concurso público. Tais cargos são teoricamente de fácil extinção, mas continuam sendo usados em todos os níveis federativos seja como fonte de apoio político eleitoral, seja para reforçar o caixa dos seus patronos, como se sabe, através de práticas como a famosa “rachadinha”. Muitas vezes com efeitos semelhantes aos exemplificados no parágrafo anterior.

Pode-se argumentar que os concursos públicos, muitas vezes, não aferem as aptidões técnicas dos servidores para o cargo que vão ocupar, estendendo-se, pelo contrário, em socializá-los nas filigranas interpretativas das regras jurídicas abstratas e, por isso mesmo, muitas vezes de impossível cumprimento. E podemos estar de acordo com tal interpretação. Mas, como de hábito, em nenhum momento se ouve falar em aperfeiçoar mecanismos de incentivo e controle que responsabilizem os servidores por suas ações, ao invés de reprimir, apenas, suas transgressões quando detectadas, culpabilizando-os.

Em que pesem os discursos sobre transparência e adoção de critérios modernos de gerenciamento e gestão, o que observamos em ação, historicamente, no Brasil, é um sistema antigo, tradicional, herdado das matrizes judiciárias coloniais portuguesas trazidas pelos Tribunais da Relação. Este é voltado para a punição dos transgressores, sempre possível pelo eventual não cumprimento de regras abstratas, cuja execução correta depende de uma interpretação muito particular da autoridade encarregada de avaliar sua implementação. Neste sistema, todo engessado em obrigatoriedades abstratas a serem seguidas à risca, mas desligado das condições práticas de sua execução, todos sempre podem ser culpabilizados a qualquer tempo por terem transgredido a regra abstrata: por dolo, erro ou simplesmente por terem se omitido em cumpri-la.

A reação óbvia a um sistema de regras obrigatórias, abstratas, de aplicação draconiana e arbitrária como este, é a de blindar os servidores ao máximo, para que não estejam sujeitos a perseguições pontuais por seus desafetos. Por outro lado, o sistema que tem sempre a ameaça do castigo iminente pela interpretação arbitrária das regras pela autoridade de plantão, oferece espaço para negociações, nem sempre transparentes, para que suas avaliações sejam flexibilizadas. A regra abstrata e de draconiana e arbitrária aplicação abre espaço para a negociação implícita de sua flexibilização, gerando, certamente, ambiente propício a desvios e eventuais situações de corrupção. Tudo isso acontecendo dentro de um processo em que todos são potenciais alvos deste sistema de culpabilização, mobilizado através dos notórios “processos administrativo-disciplinares” (PADs) sejam efetivamente culpados ou não. Veja-se, por exemplo, o notório caso do Reitor da UFSC, que enfrentando acusações que não se confirmaram, mas que resultaram em tratamento preliminar indigno antes das apurações devidas, pôs término a vida. Se todos são sistematicamente, por princípio, suspeitos, como identificar efetivamente quem é o corrupto?

Um outro sistema de controle, no entanto, é possível. Baseado na transparência e ênfase na interpretação literal e consensual das regras, regido por protocolos construídos a partir das experiências em aplicá-las, com a colaboração não só de quem os redigiu, mas de quem os aplica. E com a permissão de que os servidores tomem suas decisões, mesmo que extraordinariamente elas impliquem não seguir as regras, desde que os mesmos se responsabilizem por suas ações. Seria um sistema que não se sustenta em uma suspeição sistemática sobre todo o corpo funcional, com exceção restrita, é claro, aos apaniguados que tem a “confiança” do chefe e com ele trocam favores recíprocos.

A insistência na punição depois do leite derramado é tão forte, que o ethos da suspeição sistemática e da tutela do Estado sobre os cidadãos não se esgota, é claro, no trato com os servidores. O pacote anti-crime levado ao congresso se estende em imaginar situações de punição dos transgressores, aperfeiçoando as delações premiadas que se estendem em anexos infindáveis, muitas vezes de improvável apuração. Mas muito pouco se fala em regulamentar a atividade dos lobistas, esses intermediários que viabilizam a exceção das regras em nome de interesses particulares. Fora da regulamentação que explicita o que pode e o que não pode ser feito, orientando essas atividades e prevenindo transgressões, como uma forma de compliance, nada se pode fazer se não punir depois de ocorridas, quando possível, as transgressões que se possa provar em juízo. O que, como tem ficado explícito ultimamente, depende muito do “livre convencimento motivado do juiz”1, pois não há regras claras e de interpretação inequívoca para a admissão ou exclusão de provas, no Brasil.

Vivemos em uma sociedade de controle administrativo, civil e criminal inquisitorial, em que temos que estar sempre provando quem somos, apresentado carteiras de identidade, certidões, certificados e diplomas xerocopiados e carimbados para confirmar nossos status e graus profissionais, que supostamente certificam nossa competência. É esse ethos cartorial, fiador da única fé pública oficialmente fidedigna, que aparentemente sacia a suspeita sistemática que rege as formas de controle administrativo, civil e penal no Brasil. È disso que teríamos que nos livrar para, pedagogicamente, poder socializar-se a população em outra chave de controle estatal, civilidade e convívio ético, que poderia produzir o ambiente de previsibilidade e confiança essencial para não só o funcionamento do mercado, mas para contribuir decisivamente para a construção de uma ordem pública democrática e republicana. Essa é a reforma político-jurídico-administrativa que se impõe.

1 Prerrogativa exclusiva dos juízes nos processos a seu cargo que significa que decidem livremente, segundo seu entendimento particular e justificam sua decisão posteriormente.

 

Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, respectivamente coordenador e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br)

 

 

                                     

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Claúdio Salles

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