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Segunda, 11 Maio 2020 19:27

Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus

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Nosso site reproduz aqui o artigo "Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus", escrito por Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Geraldo,  respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) . O artigo foi publicado nessa segunda , 11 de maio de 2020, no BLOG Ciência e Matemática do O GLOBO . 

Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus

 

A pandemia que nos assola tem suscitado discursos aparentemente contraditórios entre, de um lado, a preservação da vida e de outro a preservação da economia. Quanto a este último, frequentemente tem-se enfatizado o fato de que o confinamento social, recomendado para preservar a vida, atingiria fortemente o exercício do direito à liberdade, que deveria ser respeitado como um direito essencial à democracia.

 

Essa dicotomia, como muitos apontaram, não se sustenta, mas faz parte de uma estratégia de confrontação discursiva própria de nossos tempos politicamente radicalizados. Uma cilada moderna construída através da linguagem da política e do direito que reduz e simplifica nossos dilemas contemporâneos obliterando-se a complexidade de nossa sociedade plural e multicultural. Assim, essas dissensões cognitivas simplificadas sobre o sentido mundano da vida moderna eclipsam pontos de vista distintos como os da política, do direito e da religião para produzir violentamente soluções simples para problemas complexos.

 

A intenção aqui é explicitar o significado nada evidente do déficit de direitos civis que sistematicamente assola nosso sistema jurídico-político desde sempre no que se refere à igualdade de direitos dos cidadãos e de suas liberdades. Nossas pesquisas há muito apontam que o sistema jurídico brasileiro naturaliza a segmentação da sociedade em partes desiguais não só em virtude de seu status econômico, o que seria próprio do sistema capitalista pautado, particularmente, pelo princípio das liberdades das escolhas individuais, mas também em virtude destes segmentos serem portadores de direitos desiguais, herança inusitada e estranhamente resiliente tanto de nosso passado imperial, como da escravatura, regime que equiparava os escravos a animais domésticos e/ou domesticados.

 

Nossas faculdades de direito ensinam que “cidadãos” são aqueles que exercem seus direitos políticos, assim retirando da cidadania aqueles que não votam e, portanto, até meados do século passado, todos os analfabetos e até hoje todos os jovens de menos de 16 anos. Ao proceder a essa exclusão, nosso sistema jurídico, repetindo incansavelmente que “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”, enfatiza que seu papel não é o de distribuir igualmente os direitos pela população, mas de distribuí-los desigualmente, para não alterar a composição juridicamente piramidal da nossa sociedade, em nome da necessária manutenção de uma ordem naturalmente desigual das coisas

 

Ora, na equação jurídico-político-econômica liberal da sociedade capitalista ocidental, o direito iguala formalmente os diferentes, atribuindo-lhes um mínimo comum de iguais direitos, para que o mercado possa exercer sem maiores dilemas morais e éticos sua inexorável desigualação econômica, pois credita-se aos indivíduos a possibilidade e capacidade desses optarem entre trajetórias diferentes em um universo limitado de opções presentes no espaço público e no mercado. Acredita-se que tais cidadãos, igualados juridicamente, estariam em condições de competir, pelo seu mérito, para alcançar os lugares mais altos da estrutura social, ou mesmo, por liberdade de escolha, abdicar dessa opção em prol de outras formas alternativas de vida que não estejam associadas ä ascensão social, tornando-se um desviante do sistema. Ora, como isso não ocorreu assim tão simplesmente, uma série de outros direitos – políticos, sociais, etc., se juntam aos diretos civis para “mitigar” a desigualação que é da natureza do mercado.

 

Em nosso caso, entretanto, uma desigualação jurídica ainda mais consistente e presente ocorre antes da desigualação do mercado se instalar nas relações econômicas de nosso cotidiano, como que a opor-se ou impedi-la juridicamente. Evitar-se-ia, assim, a destruição das formas aristocrático-oligárquicas de desigualação, impedindo que as regras do mérito na competição do mercado prevaleçam, em prol da manutenção de privilégios que, se numa monarquia absoluta se fundavam no sangue azul e no direito divino dos reis, em uma república não fazem sentido algum.

 

É assim que nosso direito preza muito a proteção das liberdades civis, desigualmente distribuídas pela nossa pirâmide jurídica, em que poucos as podem exercer em sua plenitude, enquanto muitos nunca as tiveram em seu pleno exercício, como é o caso das populações que vivem confinadas em favelas, geograficamente delimitadas em regiões disputadas pelas facções e/ou pelas milícias no Rio de Janeiro.

 

Esse mesmo sistema não se sensibiliza nem se estrutura para distribuir igualmente os diretos civis pela população. Se esta fosse a sua preocupação, esse discurso de oposição às restrições da liberdade de ir e vir teria que encontrar sua limitação no exercício do direito à saúde pública, de viver e proteger-se de todos os cidadãos. O confinamento não tem apenas um lado de restrição negativa da liberdade individual, ou de proteção dos confinados pelo medo da contaminação mas, principalmente, também visa a proteção dos outros cidadãos em relação à expansão da contaminação viral e ao direito ao atendimento médico satisfatório para todos. Além do mais, os cidadãos, portadores todos de iguais direitos, não deveriam poder ser inflexivelmente e simploriamente segmentados entre aqueles que podem confinar-se e os que estão destinados a arriscar-se em movimento. As mídias digitais têm mostrado aglomerações em São Gonçalo e na Baixada Fluminense que atestam essa natural desigualdade entre os trabalhadores que têm que se movimentar e as classes médias e alta, que podem usufruir do privilégio de se confinar.

 

Ora, a preservação da vida – e da saúde - decorre de uma dimensão normativa negociada e escolhida entre os representantes da sociedade num documento constitucional que constituiria, suposta e antinaturalmente, os escopos das instituições, nossos artefatos sociais para “efetivar direitos”, como diriam os bacharéis em direito. Não é à toa que no documento que deveria constituir as finalidades mundanas das instituições brasileiras, já estava inscrito que as diferenças naturais dos sujeitos não são critérios legítimos para justificar um tratamento desigual por parte dos membros do Estado, pois são diferentes em sua igualdade, mas jamais desiguais em suas diferenças.

 

Não é demais notar que essa desigualdade de direitos naturalizada nessa situação pandêmica guarda semelhança com aquela existente desde sempre em nossa segurança pública, ao desprezar as atitudes de prevenção, próprias das sociedades igualitárias, padronizadas e normalizadas. Como na segurança pública, em que se espera que a política de guerra, ou combate ao crime na base do “tiro, porrada e bomba” extinga os conflitos da sociedade, aqui também são prescritos sucessivamente remédios para curar a praga disseminada pelo vírus. Em sociedades igualitárias as políticas preventivas que visam evitar ao máximo a ocorrência de transgressões são consideradas pelo menos tão relevantes quanto as repressivas; já nas sociedades de juridicamente desiguais, a repressão dos transgressores é a tônica da política majoritariamente implementada, sempre destinada, é claro, a reprimir ou extinguir os “bandidos”, isto é, “os outros” ou, no caso, os doentes.

 

Num sistema juridicamente individualista e igualitário, os indivíduos tendem a diferenciar-se identitariamente para reivindicar o exercício de direitos iguais para todos os diferentes cidadãos e há um mínimo comum de direitos compartilhados uniforme e igualmente por todos os diferentes indivíduos. Isso resulta em que o direito à liberdade de cada um está submetida ao respeito aos iguais direitos de liberdade do seu próximo. Mais, a liberdade de cada um se exerce fazendo opções dentro de um elenco limitado de possibilidades previamente definidas, não havendo nunca a possibilidade de se fazer escolhas que transgridam esse limite. É como os sanduíches do Mac Donald’s, não se pode comer bisnaga com queijo, salame e goiabada, como se pede na padaria da esquina. Ou seja, não se pode tudo, não há liberdade absoluta no sistema jurídico liberal-capitalista, um mundo no qual a liberdade de cada um se exerce até atingir a liberdade alheia.

 

Assim, a liberdade liberal não pode ser confundida com a ideia de liberdade seletiva e irrestrita do mundo das hierarquias e desigualdades naturalizadas, como ocorre no do Brasil. A liberdade liberal não é a libertinagem, pois, pelo contrário, exige uma enorme internalização e normalização das condutas dos cidadãos regidos por padrões e normas uniformes e igualmente distribuídas entre os segmentos da sociedade. Trata-se, como salientei, da escolha do Mc Donald's entre sanduíches já previamente dispostos entre as opções do menu e não o self service brasileiro que permite composições ilimitadas da sua liberdade de escolher comer salmão com jiló.

 

Já num sistema hierárquico, a individualização desiguala e leva ao exercício particularista do egoísmo e à desigualdade no exercício de direitos. É o caso brasileiro, em que a pandemia explicita que uns podem considerar-se, naturalizadamente e sem oposição mais livres que os outros, em detrimento da igualdade de todos. O exercício da solidariedade, o sacrifício do confinamento para o benefício de todos escapa de nossas mãos não só pelo tratamento do conflito com a lógica da guerra, como escreveu recentemente neste jornal Daniel Tabak1, mas também pelo reforço do exercício naturalizado da desigualdade de direitos, pela irresponsabilidade dos dirigentes que persistem na negação do risco, evitando o estímulo às soluções preventivas, e escolhendo o perigo e a morte (supostamente, sempre dos outros) como solução.

 

 

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