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Segunda, 15 Janeiro 2018 09:42

O QUE JOVENS E POLICIAIS DA PERIFERIA DE BRASÍLIA TÊM A DIZER? UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA SOBRE IDENTIDADES, REPRESENTAÇÕES E VIOLÊNCIAS.

Escrito por

O site do InEAC reproduz aqui o artigo "O que jovens e policiais da periferia de Brasília têm a dizer? Uma análise sociológica sobre identidades, representações e violências." da antropóloga Haydée Caruso, professora na Universidade de Brasília. Investigadora visitante do ICS-UL e pesquisadora vinculada ao INCT InEAC . O artigo saiu publicado no blog Life Research group da Universidade de Lisboa. https://liferesearchgroup.wordpress.com/2018/01/11/o-que-jovens-e-polici...
"O que jovens e policiais da periferia de Brasília têm a dizer? Uma análise sociológica sobre identidades, representações e violências."

É possível observar uma cidade, sua vida cotidiana, sua cultura local, seu ritmo e os personagens que por ela vivem e circulam por várias perspectivas, eu diria por múltiplas janelas. Uma das janelas que abri para compreender sociologicamente a dinâmica citadina mostra-me os encontros e desencontros que marcam a relação entre os jovens e policiais. Uso a palavra encontro de modo figurado, no sentido de colocar minha lupa sobre a possibilidade concreta de atuação da polícia junto a um de seus públicos prioritários: os jovens.

Neste caso, minha aposta concentra-se na ideia de que o contato, por vezes marcado por colisões entre a polícia e seus públicos, num determinado contexto empírico, pode ser revelador sobre as bases estruturais da relação entre o Estado e uma dada Sociedade.

A partir do interesse em problematizar o lugar da Polícia em sociedades desiguais e com uma frágil democracia, como a brasileira, é que passei a me ocupar em realizar pesquisas empíricas que pudessem colocar luz sobre os dilemas e desafios enfrentados pela Polícia, enquanto uma das instituições estatais de controle social, “mais vistas e pouco conhecidas”, apesar de ser “um fato inevitável da vida moderna”. (Reiner, 2004, p.83).

Portanto, parto da ideia de que uma cidade pode ser decifrada também por aquilo que ela revela cotidianamente, a partir das abordagens que a polícia faz em determinados grupos e não em outros, da sua presença num bairro, numa praça, quadra, escola… enfim, pelas experimentações e vivências que cidadãos e policiais estão imersos e que resulta num exercício de autoridade e alteridade permanente.

Dito isso, resolvi realizar, entre 2013 e 2016, pesquisa empírica na cidade de Ceilândia, localizada há 30km da capital do Brasil e que possui mais de 400 mil habitantes.

Essa não é uma cidade qualquer no contexto da periferia de Brasília. Seu nome traz a marca de sua distinção e vale aqui, em breves palavras, contar que o prefixo CEI remete a Campanha de Erradicação de Invasões, promovida pelo governo nos anos de 1970, no intuito de retirar da nova capital e ícone de cidade modernista, os que vieram de toda parte do Brasil para construí-la, mas que não “cabiam” neste projeto de modernidade. Aqueles que se tornaram indesejáveis invasores e que permaneceram em canteiros de obras transformados em moradias irregulares foram “convencidos” a ganhar um lote nesta nova cidade. (Andrade, 2007; Ribeiro, 2008; Tavares, 2009; Paviani; 2010; Barbosa, 2016)

Passados mais de quarenta anos desde sua criação, Ceilândia é, ao mesmo tempo, ausência e resistência. Território marcado simbolicamente pela ausência (ou insuficiência) de políticas públicas, pelo descaso, abandono, precariedade e perigo traduzido em algumas áreas e em alguns corpos. É simultaneamente palco de enorme resistência, por meio da força de sua cena cultural, especialmente com o Hip Hop; da atuação de coletivos juvenis, de mulheres e de tantos outros atores sociais que se orgulham de serem Ceilandenses e que, por isso, de lá não desejam sair.

Durante o trabalho de campo, foi possível refletir sobre as visões de mundo dos agentes policiais que lá atuam acerca de suas práticas profissionais e as representações em torno de suas ações voltadas para os jovens, bem como entender o que pensam esses mesmos jovens sobre a polícia. Minha proposta consistiu em mapear quem são e o que pensam, levando em conta os elementos sociais, econômicos, culturais e étnico-raciais que norteiam essa relação. Como num jogo de espelhos, a análise das narrativas dos distintos interlocutores visou explorar como os jovens veem a polícia, como essa os enxerga e classifica, e como se veem mutuamente.

Entre as várias dimensões exploradas, uma chamou atenção pelo fato de que os policiais e jovens, quase sempre, estavam no mesmo momento etário, todavia essa condição de ser um jovem policial pareceu trazer uma incompatibilidade em si. Explico o porquê. É como se, uma vez policial, mesmo que ainda jovem, fosse condição suficiente para impossibilitar qualquer possível vinculação identitária com outros jovens a serem policiados, protegidos e/ou controlados.

A farda – como uma segunda pele para o policial – o separa simbolicamente das possíveis brechas de reconhecimento junto ao seu público, o que reforça diuturnamente a ideia de um nós-policiais contra ou em combate a esses outros-inimigos.

Para reforçar esse argumento, foi interessante notar que além de idades semelhantes, muitos jovens e policiais possuíam origens étnicas e geográficas parecidas e, por vezes, compartilhavam de uma mesma estética visual, gostos musicais e estilos de vida; entretanto essas possíveis semelhanças não têm sido suficientes para construir interações que resulte no exercício da autoridade e não da arbitrariedade; que privilegie a garantia de direitos e não a sua exclusão.

Tampouco entre os próprios jovens, as dinâmicas interativas deixam de ser marcadas por múltiplas violências. Ceilândia aparece nos dados oficiais como a cidade com o maior número absoluto de homicídios do Distrito Federal, especialmente entre jovens, do sexo masculino e negros, mesmo que esses números estejam em queda desde 2012. Neste caso, os jovens estão entre as principais vítimas e os principais autores. E se for um jovem negro, a probabilidade de ser uma vítima fatal é 3,37 vezes maior do que um jovem branco, considerando os dados de todo o Distrito Federal (Fonte: IVJ- Violência e Desigualdade Racial 2017).

Portanto, enfrentar tal realidade, seja no contexto local investigado, como em nível nacional, tem sido pauta constante das manifestações públicas de diversos grupos sociais, instituições civis, universidades e, sobretudo, movimentos negros e de jovens no sentido de chamar atenção para a escalada de mortes que insistem em ser invisibilizadas na agenda de intervenção estatal[1].

Aproveito ainda para contar um pouco mais sobre as estratégias adotadas para o trabalho de campo em si, o qual foi fruto de um processo coletivo de construção e imersão no terreno, reunindo pesquisadores de graduação e pós-graduação que, junto comigo ou individualmente, coletaram e analisaram os dados qualitativos obtidos.

Foram várias as técnicas de pesquisa adotadas, desde entrevistas, grupos focais e observação participante em escolas públicas e unidades policiais. Contudo, uma delas foi a mais desafiadora: a que denominei “rodas de conversa”, onde policiais e jovens de diferentes partes do Distrito Federal foram convidados a conversar.

Uma das rodas foi registrada e resultou no documentário Jovens e Policiais: um diálogo possível? Em poucas palavras, a experiência olho no olho propiciou um diálogo incomum, ou melhor, criou um espaço de fala e escuta entre atores reiteradamente colocados em campos opostos em que um representa o Estado, ainda construído, em oposição aos cidadãos.

A possibilidade de uma conversa desprovida de um roteiro pré-determinado de questões e respostas oficiais, em que jovens e policiais expuseram suas visões sobre a vida, suas fragilidades, anseios e medos revelou tanto pelo que foi dito, como também pelo que não foi dito – mas esteve presente nas entrelinhas e nos olhares entrecruzados: as várias feridas que continuam abertas numa sociedade marcada pelo seu passado colonial e escravocrata, que insiste em manter alguns mais iguais que outros, demonstrando que a ideia de uma sociedade livre e plural, ainda, faz parte de um longo percurso a cumprir.

[1] Vale conferir a Campanha “Jovem Negro Vivo” da Anistia Internacional – Brasil. Ver em https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/ e a ação do Governo Federal Plano Juventude Viva em http://www.juventude.gov.br/juventudeviva/o-plano

Como citar este artigo: Caruso, Haudée (2018) O que jovens e policiais da periferia de Brasília têm a dizer? Uma análise sociológica sobre identidades, representações e violências. Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2018/01/11 11 de janeiro 2018 (Acedido a xx/xx/xx)

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