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O site do InEAC disponibiliza aqui o artigo do antropólogo Marcos Veríssimo, publicado na Revista Perspectiva (Revista do Centro de Ciências da Educação).

Batendo de frente na escola: uma abordagem antropológica sobre conflitos na escola pública fluminense

O artigo descreve e interpreta práticas e representações presentes no cotidiano escolar da rede pública fluminense, com especial atenção aos conflitos entre professores, alunos, direção, funcionários etc. A metodologia utilizada é de feitio qualitativo, a partir de experiência empírica e trabalho de campo, propiciada pelo vínculo do autor como professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro desde o ano de 2005, lecionando as disciplinas de sociologia e filosofia para o ensino médio na cidade de São Gonçalo (município com mais de um milhão de habitantes, localizado na chamada “região metropolitana” do Rio de Janeiro). Neste contexto, “bater de frente” é uma atitude e uma ideia que constrói identidades e permite ao etnógrafo entender, focado na escola pública, estes processos de construção e subversão de valores e alteridades que afirmam ou contestam estruturações sociais mais amplas.


Clique aqui para baixar o PDF.

O Curso de Tecnólogos em Segurança Pública e Social/UFF, no Polo São Gonçalo, promove nessa quinta-feira, dia 25 de abril de 2019, a mesa LEI E MORALIDADES: PESQUISAS EMPÍRICAS NO CONTEXTO DO RIO DE JANEIRO. A atividade contará com a participação dos pesquisadores Marcos Veríssimo, Yuri Motta e Gabriel Borges.  A mesa terá inicio às 17:30 e o Polo Universitário Cederj São Gonçalo fica localizado na R. Visc. de Itaúna, 267 - Gradim, São Gonçalo - RJ, 24431-00. Outras informações confira no cartaz .

 

O Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança (PPGJS) realiza na próxima sexta-feira, dia 26 de abril de 2019 a Aula Magna: A Pós-Graduação em Antropologia no cenário contemporâneo nacional: Desafios e Perspectivas com o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima. A atividade acontecerá às  10 horas, no Auditório do bloco "P", Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense, na Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n,  São Domingos, Niterói.

Antonio Carlos de Souza Lima é Licenciado em História pelo ICHF/Dept. de História, Universidade Federal Fluminense (1979), mestre (1985) e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992). Atualmente é Professor Associado II de Etnologia/Depto. de Antropologia, UFRJ, e pesquisador I-B (desde março de 2009) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Tem experiência nas áreas de Antropologia Política e História da Antropologia no Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: Antropologia do Estado (administração pública; cooperação técnica internacional), indigenismo, política indigenista, antropologia histórica. Foi Vice-Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (2002-2004). Pesquisador-bolsista Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ (2004-2006; 2007-2009). É co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade Cultura e Desenvolvimento (LACED - www.laced.etc.br)/Setor de Etnologia/Dept. de Antropologia-Museu Nacional/UFRJ - nele coordenando, com recursos da Ford Foundation, o projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indígenas no Brasil.

Terça, 16 Abril 2019 16:37

Crônica manicomial

Republicamos aqui no site do Ineac a "Crônica Manicomial", escrito pelo sociólogo e jornalista Marcos Rolim para o site SUL 21 . 

Para Polônio, a loucura de Hamlet revelava um método. Há quem veja método nas ações de Bolsonaro, mas o que há é loucura só. Entenda-se o termo aqui como um recurso literário a refletir o que não cabe nos conceitos correntes para incapacidade crônica, ignorância abissal, alienação persistente do mundo e inclinação patológica pela morte. Tudo o que essas características preparam para o futuro do Brasil será traduzido em sofrimento, porque essa é a natureza da loucura no poder. É preciso saber do que se trata, sem a reprodução de fórmulas ideológicas. Há uma dimensão necessária de desvario em todos os projetos de redenção, em todas as mitologias político-ideológicas, em todos os discursos populistas. Bolsonaro, entretanto, situa-se além desses discursos. Ele é a representação mais coerente de todos os passados; dos passados que nunca passaram no Brasil, que estiveram sempre ali, como disposição violenta e miséria cultural, na ânsia pelo açoite no calabouço do morro do Castelo, na água fervente que vertia dos apartamentos cariocas sobre os moradores de rua, nas ratazanas que circulavam no presídio Evaristo de Moraes, na revolta da vacina, na demolição do Palácio Monroe, na “Casa da Morte” de Petrópolis.

O governo Bolsonaro é uma contradição em termos, porque governar, seja qual for a direção que se pretenda, pressupõe projeto e racionalidade. O vazio de ideias e projetos paralisa o governo na fenda das disputas internas pelo Poder onde olavistas, militares, liberais, políticos de 4º escalão, os filhos do presidente, fundamentalistas religiosos e uma plêiade de incompetentes e lunáticos se engalfinham. O quadro é tão desastroso que são os militares que passam a encarnar a reserva de bom senso, ainda que dentro do hospício, o que é outro sintoma da exaustão do modelo político brasileiro. Sem saber o que fazer, Bolsonaro vai desconstituindo o que foi feito, enquanto o mercado e a mídia aguardam pela aprovação da reforma da Previdência, preservando-se os interesses do rentismo para o qual nunca houve governo na história do Brasil.

Muito dificilmente o Congresso aprovará a reforma da Previdência proposta pelo governo. A tendência é que uma reforma diluída seja aprovada, sem que se resolvam os problemas reais da própria Previdência, muito menos os da economia. Se este for o desfecho, as expectativas quanto ao governo, de parte do próprio mercado, serão nulas. O problema é que o Brasil terá, pela frente, mais de três anos de internação manicomial. Com 14 milhões de desempregados, filhos do capitalismo parasitário que por aqui se pratica; com famílias negras sendo alvejadas com 80 tiros, com todos os silêncios dos defensores da família, da lei e da ordem; com toda a apatia que nos adoece; com a desilusão pelo mundo, a ideação suicida e as armas de Suzano; com a lama de Brumadinho e as lives do presidente no Facebook? Será possível que o País suporte tanto? Improvável. O que há, então, é uma grave crise em curso, cujo desfecho poderá conduzir o general Mourão ao poder. Olavo de Carvalho sabe disso, Bolsonaro também. Por isso, o astrólogo xinga os militares e o presidente se cala.

Já seria muito, mas os problemas do Brasil não se resumem à ausência de governo. Eles estão fortemente instalados também na oposição. Uma pergunta sintetiza o tamanho da encrenca: O que propõe a oposição? A resposta, em termos de política pública, é um deserto, o que, assinale-se, não caracteriza fenômeno novo. Faz tempo que os partidos de esquerda não propõem caminhos e não mobilizam em torno de alternativas políticas. O discurso da esquerda sob a hegemonia do lulismo é, centralmente, uma narrativa de vitimização que a aprisiona.

Independentemente do que há de verdade e de mistificação nesse discurso (e há mistificação e verdade), o fato é que ele conduziu a esquerda para dentro de uma cela. Dentro desse espaço, não se fala em corrupção, porque isso demanda a autocrítica radical nunca realizada. É mais simples e operante apresentar a Lava Jato como um projeto da CIA e tratar o Poder Judiciário, o Ministério Público, o Congresso, a Mídia e todas as instituições como marionetes do capital e chocadeiras do fascismo. Nessa narrativa, a corrupção não é, inclusive, um problema real como ensina Jessé Souza.

O efeito político mais importante desse discurso é uma verdadeira façanha: a entrega da bandeira da luta contra a corrupção nas mãos da extrema-direita. Trata-se de uma derrota estratégica que subtrai da esquerda a legitimidade de fala.

Sem equacionar esse problema, sem realizar um balanço público a respeito dos seus erros e sem solucionar conceitualmente sua relação com a democracia, a esquerda continuará na companhia dos seus fantasmas; alguns deles bem assustadores como Maduro, Ortega e Kim Jong Un. Por isso, aliás, o bolsonarismo já em crise segue selecionando a esquerda como seu sparring. Na verdade, Bolsonaro depende desse adversário e jamais teria chegado aonde chegou sem ele. Ironicamente, a estratégia eleitoral do PT apostou nessa mesma polarização, imaginando que Bolsonaro seria o adversário ideal no 2º turno (uma expectativa que foi refletida, à época, nas análises de Breno Altman e Paulo Henrique Amorim, veja aqui).

A esquerda brasileira precisaria se reinventar, mas é – para dizer o menos – improvável imaginar que o PT realize um aggiornamento aos moldes do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), por exemplo, dando por encerrada uma fase histórica e projetando novos valores e símbolos para uma esquerda contemporânea aos desafios da complexidade. O problema maior, entretanto, nem é o conservadorismo do lulismo, mas o fato desse fenômeno ter se transformado no principal inibidor para o surgimento de uma alternativa progressista e renovadora. É comum que lideranças progressistas não subordinadas à narrativa da esquerda tradicional sejam tratadas como inimigas a serem derrotadas. Foi assim com Marina nas eleições de 2014 e com Ciro em 2018. Recentemente, a jovem deputada Tabata Amaral (PDT-SP), em audiência pública com o então ministro da Educação, se pronunciou de forma respeitosa e justa, cobrando do Sr. Ricardo Vélez dados, projetos e metas, ao invés de desejos (veja aqui). Ela disse que não iria debater “fumaça ideológica”, mas que queria discutir a capacitação técnica do titular e de seus assessores. Foi o que bastou para que um pequeno exército de internautas alegadamente “de esquerda” passasse a atacá-la. Tabata, suprema acusação, não seria “verdadeiramente de esquerda”, uma construção que assinala fumaça muito apreciada por uma tradição narcísica e intolerante que, aliás, sente-se mais à vontade com sonhos do que com dados, projetos e metas. Nenhum fascista soube o que dizer contra Tabata naquele dia. Nem precisou.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

 

https://www.sul21.com.br/colunas/marcos-rolim/2019/04/cronica-manicomial/

 

O nosso site disponibiliza a entrevista publicada no site da UFF - Universidade Federal Fluminense, com o antropólogo Fabio Reis Mota, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) e pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) e Leonardo Brama, pesquisador do InEAC e mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF.

 

A brutalidade nossa de cada dia: estudo da UFF sobre milícias aponta naturalização de uma sociabilidade violenta no Rio de Janeiro

 

April 10, 2019

Em uma rápida busca na internet do termo milícias, são exibidas na tela um milhão e seiscentas mil citações. O número fala por si. Nos últimos anos, no Brasil, as organizações criminosas conhecidas como “milícias” cresceram exponencialmente, assim como sua publicização no espaço público e midiático. O que esses números revelam, para além da óbvia constatação de expansão desse fenômeno no contexto social? Qual a importância de se compreender as razões que possibilitam a emergência de tamanha articulação de poder? E o que essa sociabilidade violenta aponta sobre quem somos nós e a sociedade que temos construído para viver?


Essas e outras questões foram amplamente debatidas em conversa com dois pesquisadores da UFF que têm se dedicado a entender o que são, como funcionam e se articulam as milícias na cidade do Rio de Janeiro: Fabio Reis Mota, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) e pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) e Leonardo Brama, pesquisador do InEAC e mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF.


Abaixo, reproduzimos as perguntas que elaboramos para abordar a temática juntamente com os pesquisadores, seguidas das respostas, que foram pensadas e organizadas em conjunto por eles.

O que são as milícias?


Em primeiro lugar devemos esclarecer que há uma diversidade de formas de organização e atuação do que se denomina genericamente e muitas das vezes abstratamente de milícia. Torná-la uma pauta pública e política veio, paradoxalmente, produzir uma aderência de um exército de excluídos aos grupos formados sob a categoria de milícia e milicianos. Por exemplo, na Zona Oeste esse processo de adesão e expansão às organizações definidas como milicianas cresceu de forma espantosa nos últimos 10 anos particularmente.


Logo, devemos ter em mente a amplitude que o termo pode representar: desde um grupo de ex-policiais que se organizam para “colocar ordem” local até grupos fortemente armados e logisticamente bem organizados que atuam em diferentes frentes, desde a econômica, com a grilagem de terra, na manutenção de empresas de natureza diversa (terraplanagem, comércios lícitos e ilícitos, etc) até as entranhas do sistema político e judiciário. O ser miliciano se tornou uma identidade política e pública para muitos dessa massa de excluídos que veem nela um espaço para aquisição de bens materiais e simbólicos - como poder, prestígio, reconhecimento.

Como elas se diferenciam de outras organizações criminosas?


Suas diferenças são muitas com relação às outras organizações criminosas, sejam elas as institucionalizadas que estão no interior do estado, da política e do judiciário, ou as que estão à margem do estado, tal como o tráfico de drogas. A principal diferença quanto a esta última modalidade é a capacidade da milícia em produzir nos territórios ocupados uma dimensão moral positiva (ou menos negativa) acerca do pertencimento à identidade de universo miliciano.


Ser traficante significa portar uma identidade negativa, estigmatizada e até mesmo deteriorada, ao passo que, em muitos lugares, a identidade de um miliciano pode comportar dimensões positivas e valorizadas moralmente pelos moradores, familiares, amigos, bem como pelas redes de interação mais ampla de um bairro etc. E quanto à estrutura, as maiores e mais influentes milícias se assemelhariam muito mais às dinâmicas e práticas de grupos mafiosos propriamente ditos, em virtude de sua influência no interior do poder estabelecido (político e judiciário) e da forma como atuam nos diferentes mercados e com suas distintas mercadorias simbólicas e materiais.

Como agem as milícias nas comunidades que controlam?


Há diferenças substanciais do histórico delas se tomarmos a Baixada Fluminense e a Zona Oeste, por exemplo, o que se expressa nos modos como regulam os espaços mediante uma governança pela violência. A violência no Brasil, como já há muito tempo um sociólogo importante, Luiz Antônio Machado, diagnosticou é uma linguagem que permeia as teias das relações sociais no âmbito público e privado. A sociabilidade violenta é o modo pelo qual as milícias, de um modo geral, tornam suas atuações legítimas.


Depois, elas agem como promotoras de bens materiais, como “gato net”, gás, comércio, água, etc., e simbólicos, como a proteção, segurança, etc., na conformação de um universo de consumo que lhes possibilita a construção da legitimidade do poder pelo e no capitalismo. E, por fim, elas agem como filtros de produção de identidades públicas e “cívicas” para sujeitos histórica e estruturalmente excluídos do mercado e do espaço público da cidadania.


Nesse sentido, tanto a milícia como o tráfico são dispositivos que se tornam meios de visibilização e de promoção de status social a quem se encontra absolutamente fora do espaço público e cívico da cidadania. As milícias, portanto, agem como filtro de controle social em ambientes nos quais os organismos estatais possuem pouca aderência ou agem excluindo e produzindo a desconsideração dos direitos fundamentais, como a eliminação de vidas de cidadãos, a exemplo da atuação policial no Brasil.

Como você definiria o funcionamento da milícia no Rio de Janeiro, quais as forças que a compõe e como ela se articula em meio aos poderes?


Não existe um funcionamento padronizado; isso depende muito dos grupos e do tipo de relações que tecem a rede de cada um deles, aliás, do capital político em jogo. Claramente, quanto mais essas relações se encontram imersas nas estruturas oficiais do Estado (parlamento, judiciário, dentre outros), maior a organização e o poder de mando e controle dos territórios.


Não devemos deixar de mencionar que anos atrás políticos de grande envergadura e importância no meio manifestavam apreço às milícias e apontavam elas como formas legítimas de enfrentamento e substituição do poder do tráfico de drogas em muitas regiões do estado do Rio de Janeiro. Como já enfatizamos acima, as milícias, se comparadas ao tráfico, aportam uma identidade positivada em muitos dos meios nos quais atuam. Portanto, as formas de uso da violência em seus múltiplos aspectos (físico, verbal, moral, etc) e a promoção da (in)segurança e oferta de proteção (real ou ilusória) operam juntas, uma estimulando a outra, compondo um círculo vicioso de reciprocidade que alimenta o negócio.

O poder das milícias vem aumentando significativamente no Rio de Janeiro, como atestam vários estudos sobre o tema, incluindo um levantamento feito pelo Ministério Público de que, em menos de 10 anos, dobrou a quantidade de comunidades controladas por milicianos. A quais fatores se deve esse cenário?


Há muitos fatores em jogo. O primeiro é que as milícias foram vistas e tomadas como mecanismos de solução de problemas de controle e de ordem social em muitas regiões nas quais ganharam força, seja pelas próprias autoridades públicas, ou pelos moradores dessas localidades. Segundo, é que elas atuam como forma de promoção de visibilidade pública e de produção de “identidades cívicas” para uma massa de gente que tem seus direitos diuturnamente vilipendiados pelo próprio estado nas filas do hospital, pelo tratamento da polícia, pelo desrespeito nas escolas, dentre outros dispositivos de políticas públicas.


Ela é, em grande medida, consequência da má conformação de nosso espaço público da cidadania, como apontam os antropólogos Luís Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Kant de Lima, e do mesmo modo resulta da naturalização em nosso universo de sociabilidade da violência como uma gramática política e moral muito entranhada em nossas cabeças e corações. Embora em muitos países a violência exista, no Brasil ela é uma linguagem apropriada institucionalmente pelo Estado contra os cidadãos e, por conseguinte, também  é um instrumento de bordo para os cidadãos navegarem nas teias das relações sociais, conformando um verdadeiro estado hobbesiano de natureza da luta de todos contra todos. Por fim, como uma atividade capitalista lucrativa, as milícias se tornam meio de inserção desses excluídos ao mercado e aos bens materiais e simbólicos do mesmo.

Como fazer frente ao crescimento delas?


Obviamente, sem medidas que partam de uma vontade concreta de resolver o problema das milícias por parte dos mais influentes nos poderes legislativo, executivo e judiciário, dificilmente se terá como fazer frente ao crescimento delas. Nos primeiros momentos em que o termo “milícia” se espalhou na mídia, vários representantes estatais defenderam publicamente as milícias, legitimando de fato o fenômeno.


Atualmente isso não ocorre (ou, se ocorre, as declarações tendem a ser mais veladas), mas as prioridades da agenda da segurança pública não mudaram muito, pois na recente intervenção federal, não obstante o crescimento das “áreas dominadas pelas milícias”, o foco sempre foram as “áreas dominadas pelo tráfico”. Algumas das dezenas de medidas propostas para o enfrentamento das milícias (a tipificação do crime de milícia, a realização da GAECO, etc) podem até ter produzido mais prisões, mas pensar em resolver o problema com mais prisões é enxugar gelo.


E continuaremos a “enxugar gelo” se não conferirmos definitivamente ao nosso espaço público e político critérios republicanos, afeitos às sociedades com tradição democrática sólida. Nos anos 80 e 90, combatíamos o tráfico; do ano 2000 em diante, as milícias, e assim sucessivamente. Dessa forma, estaremos a combater um “inimigo” que se retroalimenta das desigualdades flagrantes no universo jurídico, social e simbólico. Afinal, no lugar de combatermos a desigualdade, reafirmamos nossos viés anti-igualitário e nossa gramática da violência em prol de absolutamente nada. Vivemos, e talvez viveremos, num eterno “enxugar gelo” se tais questões não forem enfrentadas de frente e com muito vigor pela sociedade brasileira.

Como você vê a atuação das milícias no cenário político brasileiro atual?


De modo geral, a atuação das milícias sempre representou um recurso político-eleitoral muito importante, e isso acontece desde o século passado, com os grupos de extermínio da Baixada Fluminense. Como os estudos do sociólogo José Cláudio Souza Alves mostram, bem-sucedidas carreiras de matadores se traduziram em bem-sucedidas carreiras políticas; de modo análogo, isso acontecia na Zona Oeste e em outras áreas do estado.


Em termos simbólicos, o tráfico continua sendo o bode expiatório do crime no Rio de Janeiro, e o traficante o ator social mais estigmatizado, se comparado com o miliciano. Mais violência se reflete em mais demanda de segurança, ao passo que uma maior oferta de proteção informal precisa de uma menor (ou pior) oferta de proteção formal ou estatal, e esse tipo de relações de dependência operam como uma máquina político-econômica, que funciona tanto melhor quanto mais profunda for a ligação dos grupos criminosos com os poderes estatais.


Certamente, para boa parte da população, a indústria do medo estimula e incrementa soluções orientadas pela repressão estatal, pela demanda de “mão dura”, enxergando uma repressão sempre maior como única solução. Como já mencionamos, a violência no Brasil adquire um lugar privilegiado na linguagem e nas práticas sociais. Ela é uma gramática. Em termos ideológico-eleitorais, é comum tomar como solução para o problema da segurança pública mais violência, mais combate ao crime, mais repressão, mais morte, mais armas, mais oferta de proteção. Isso já é feito no Brasil há mais de um século e onde assistimos às mudanças?

Como a universidade, na sua opinião, pode contribuir para essa discussão e transformação desse cenário?


A universidade como espaço por excelência da produção de conhecimento tem como principal papel apontar e diagnosticar os problemas que são evidenciados pelas pesquisas empíricas e etnográficas. Todavia, tais diagnósticos não reverberam necessariamente em políticas públicas e também podem ser apropriados de forma absolutamente distinta da sua proposição inicial. O conhecimento da universidade é como o do dentista ou do médico que pode apontar para o paciente os caminhos a serem percorridos para prevenir uma doença ou coisa do gênero, mas o paciente pode em seguida desconsiderar tudo que lhe foi dito ao sair da consulta.


No InEAC e NUFEP, por exemplo, esses conhecimentos têm sidos transferidos à sociedade por meio de cursos de especialização ou de mestrado e doutorado em áreas que tangenciam a justiça e a segurança pública, bem como também a partir de prestação de consultorias e assessorias às agências governamentais (no âmbito Federal, Estadual e Municipal). Entre conhecermos os problemas e a solução dos mesmos há um enorme abismo. Talvez se o conhecimento produzido na universidade fosse mais valorizado e apropriado às políticas públicas, o Brasil estaria num rumo melhor.

http://www.uff.br/?q=noticias/10-04-2019/brutalidade-nossa-de-cada-dia-estudo-da-uff-sobre-milicias-aponta-naturalizacao

 

 

Encontra-se aberta, até o dia 20 de maio, a chamada para envio de artigos para integrar o dossiê “Direitos Humanos: conflitos, moralidades e direitos”, na Revista Antropolítica, vinculada ao PPGA/UFF. A proposta visa reunir trabalhos que, a partir de uma perspectiva etnográfica, analisem e discutam práticas, sentidos e valores associados à noção de direitos humanos e expressos em lutas por justiça, processos de violação e/ou demandas por direitos e reconhecimento. Consideramos bem-vindos trabalhos que analisem as dimensões moral, burocrática e política envolvidas em tais mobilizações e processos e seus efeitos na produção de subjetividades e práticas de intervenção. Resultam, assim, inspiradoras as seguintes questões: a) como se constroem práticas e moralidades específicas em torno da categoria de “direitos humanos”? b) de que maneira são criados, manipulados, incorporados, evitados e/ou subvertidos os procedimentos burocráticos e tecnologias de governo que envolvem os “direitos humanos” como linguagem de mobilização e intervenção? c) quais são as formas de construir e legitimar movimentos sociais e processos políticos de demanda, reconhecimento e/ou confronto de direitos, a partir dessa linguagem?

Entendendo a categoria de “direitos humanos” como uma noção polissêmica, dotada de sentidos mutáveis e não homogêneos, propomos recepcionar trabalhos que discutam dispositivos administrativos, jurídicos e organizacionais acionados em diversos campos da esfera pública (judiciário; estatal; religioso; filantrópico; social etc.); processos de regulação das relações familiares, de vizinhança, de gênero e sexualidade; lutas e demandas em torno do desrespeito de direitos de grupos sociais como migrantes, jovens, crianças, grupos étnicos, entre outros.

Os artigos inicialmente selecionados, procurando dar conta da diversidade de campos e temas a serem debatidos, serão submetidos à avaliação a cegas de pareceristas externos.

Organizadoras: Gisele Fonseca Chagas (UFF) e Lucía Eilbaum (UFF)

Prazo: 20/05

As contribuições podem ser enviadas até 20 de maio pelo sistema eletrônico da revista: http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions

As normas para submissão dos textos são as mesmas válidas para artigos e encontram-se disponíveis

http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/about/submissions

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