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Terça, 09 Maio 2023 00:03

Desigualdade de tratamento judicial em questão: o fim dos privilégios ou só a garantia de sua exclusividade?

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Disponibilizamos aqui em nosso site o artigo "Desigualdade de tratamento judicial em questão: o fim dos privilégios ou só a garantia de sua exclusividade?' , de autoria de Rafael Mario Iorio Filho, Michel Lobo Toledo Lima e Roberto Kant de Lima, respectivamente pesquisadores e coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). O Texto foi publicado. nessa segunda-feira, 8 de maio de 2023.  no site de notícias BRASIL 247 - https://www.brasil247.com/geral/desigualdade-de-tratamento-judicial-em-questao-o-fim-dos-privilegios-ou-so-a-garantia-de-sua-exclusividade

 

Desigualdade de tratamento judicial em questão: o fim dos privilégios ou só a garantia de sua exclusividade?

Será que o STF, ao derrubar a prisão especial para pessoas com diploma de nível superior promoveu o fortalecimento da igualdade jurídica em nosso país?

 

Por Rafael Mario Iorio Filho, Michel Lobo Toledo Lima e Roberto Kant de Lima*

Este texto está vinculado a diversos outros textos de nossa autoria, que refletem sobre a desigualdade jurídica como uma tradição arraigada na cultura jurídica brasileira, e como tal, presente no Supremo Tribunal Federal quando da interpretação das leis e da Constituição. Então, será que o STF, ao derrubar a prisão especial para pessoas com diploma de nível superior promoveu o fortalecimento da igualdade jurídica em nosso país?

 

  Tal questão decorre da recente decisão unânime do STF, que entendeu que o inciso VII (“os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República”) do art. 295 do Código de Processo Penal1 é inconstitucional por que "o critério fundado apenas em uma especial e suposta qualidade pessoal ou moral do preso [...], por atentatório ao princípio isonômico", e ainda que "a extensão da prisão especial a essas pessoas caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei".  

  Diante dessa breve descrição do caso, esse não seria um exemplo de que a cultura isonômica se implementou no Supremo Tribunal Federal (STF) ou de um passo importante à igualdade jurídica no Brasil?

 Nossa resposta direta é um categórico Não. E a justificamos por três razões a serem desenvolvidas aqui.  

 

  Entretanto, por razões didáticas, vamos em primeiro lugar esclarecer o que significa aquilo que chamamos de (des)igualdade jurídica no Brasil, bem como o que é a prisão especial, objeto desta decisão do STF.

 

  A (des)igualdade jurídica que está estabelecida no campo jurídico brasileiro se estrutura em dois planos: (A) o primeiro, que denominamos de “sentido”, e (B) o segundo, que chamamos de “sistema”. Este segundo plano se ramifica em outras duas categorias: a (des)igualdade na lei e a (des)igualdade na aplicação da lei.  

  O sentido (A) da (des)igualdade jurídica se traduz pelo significado que os agentes do campo jurídico dão à expressão “igualdade jurídica”. A compreensão dos significados atribuídos à (des)igualdade jurídica colhidos dos agentes do campo é indicativa de que ela está naturalizada, de que ela faz parte do campo. Não se reconhece explicitamente que ela possa existir no sistema, ou seja, os agentes do campo não adotam a expressão desigualdade jurídica, mas na realidade a admitem, porque compreendem e aceitam os privilégios e as hierarquizações elencados no sistema como “prerrogativas” e/ou em nome de “diferenças”, uma vez que o senso comum jurídico diz: “a regra da igualdade é aquinhoar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”.  

 

  O plano do sistema (B) trata da operacionalização, atualização e reforço da (des)igualdade na ordem jurídica. Ele apresenta duas dimensões que se articulam com a ideia de criação da norma (atividade legislativa) e de interpretação/aplicação da norma ao caso concreto (atividade jurisdicional).

  Assim, nele constatamos que a (des)igualdade se opera nos textos normativos, com a edição de leis (e mesmo de normas constitucionais) que estabelecem privilégios e honras a cidadãos distintos, como por exemplo: prisão especial, imunidade formal parlamentar, foro privilegiado, recebimento de precatório, etc. Aqui a desigualdade está escrita na lei. Como também, esta (des)igualdade se reproduz na administração de conflitos sociais, pelo Poder Judiciário, não só por que aplica a leis de maneira desigual (decisões diferentes para casos similares, porque “cada caso é um caso”, como diz o conhecido ditado jurídico) mas também porque depende de quem aplica a lei, sem que haja uma universalização do comando normativo (pois como diz outro ditado, “cada cabeça é uma sentença).

 

  O instituto jurídico da prisão especial, previsto no art. 295 do CPP e em legislações especiais, como o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94), como sendo “a modalidade de segregação da liberdade, uma forma cautelar de cumprimento da prisão antes do trânsito em julgado, de um indivíduo que, por razões do cargo público ou função pública ou privada exercida, gozam de determinados privilégios quando da necessidade de sua prisão e tais benefícios são assegurados até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (https://canalcienciascriminais.com.br/prisao-especial/). Em uma linguagem leiga, significa estar o acusado preso em local separado da população encarcerada em geral, independentemente do crime que está sendo acusado, enquanto estiver sendo processado, até a decisão final do Poder Judiciário. Isto, pelo simples fato de exercer alguma função pública ou privada - como ter sido jurado no Tribunal do Júri, ou estar inscrito no Livro de Mérito, por exemplo - que lhe dá direito a esta forma de prisão. Sabendo-se do “estado inconstitucional das prisões brasileiras”, proclamado pelo próprio STF, pode-se imaginar que esta condição pode até representar a diferença entre a vida e a morte do preso...

  Retomando as três razões do porquê a decisão o julgamento do STF (ADPF n. 334) não sinalizou uma ruptura com a cultura da desigualdade jurídica no Brasil, podemos dizer que a primeira se traduz no argumento de que o reconhecimento da inconstitucionalidade só se deu em parte, tal seja, apenas quanto ao inciso VII (portadores de diploma de ensino superior) e não de todo o artigo. Em outras palavras, o privilégio ou a discriminação na lei da prisão continua atribuído a várias outras categorias de cidadãos.

 

  Esta constatação leva-nos à segunda justificativa. O STF não estaria adstrito apenas ao pedido realizado pelo Procurador Geral da República de se reconhecer a inconstitucionalidade apenas do inciso VII. Ele poderia ter declarado que todo o artigo não fora recepcionado pela Constituição de 1988, pelos mesmos fundamentos da isonomia. Mas não o fez.

  Pelo contrário. Parece-nos, terceira razão, que nesta decisão, o STF retirou exatamente o inciso que mais universalizava a prisão especial. Esclarecendo, quando a prisão especial foi criada na década de 40 do século passado, o Brasil ofertava apenas 41 mil vagas no ensino superior (https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/39682/1/2018_art_mabnovaesjlmedeiros.pdf), enquanto nos dias de hoje, com todos os esforços de expansão do ensino superior, temos, segundo o Censo da Educação Superior 2021 do Inep, 8.680.945 de matriculados em curso superior em 2020, e que 24% dos jovens brasileiros, entre 25 e 34 anos, concluíram o Ensino Superior no mesmo ano  (https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2021/apresentacao_censo_da_educacao_superior_2021.pdf). Ou seja, vimos tendo um aumento expressivo do número de pessoas, na série histórica levantada desde 2012 pelo Inep, com acesso ao privilégio da prisão especial pelos diplomados com ensino superior.  

 

  Sendo assim, o movimento do STF em dizer ser inconstitucional a prisão especial apenas àqueles cidadãos com ensino superior, a despeito de toda uma retórica persuasiva em prol da igualdade, segue uma direção oposta à da igualdade jurídica plena, pois desiguala e privilegia outras categorias de cidadãos, não pelo reconhecimento de diferenças que lhes são próprias e estivessem impedindo que exercessem direitos universalizados (não discriminação), mas apenas por seus cargos e funções. Seu vetor significativo vai no sentido da particularização dos direitos e não a sua universalização.

  Como costumamos dizer, a prisão especial só seria igualitária caso o seu comando fosse: todos que cometerem os seguintes crimes terão direito a prisão especial. Continuamos na contramão da ideia moderna de cidadania que se caracteriza pela instituição de um status igualitário entre todos s cidadãos (universal) que desfrutariam dos mesmos direitos, inclusive o de receberem tratamento judicial em que casos iguais recebem decisões iguais (uniforme).  

  Sobre tais questões, há um corpus de pesquisas sendo desenvolvido há algumas décadas no Brasil – a exemplo das produções no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br) – que explicitam, com dados empíricos, a naturalização da segmentação da sociedade brasileira em partes desiguais pelo sistema jurídico, pela ausência de reconhecimento de direitos individuais para vastos grupos sociais, possivelmente fruto do nosso passado colonialista e escravocrata, cuja perpetuação não encontra justificativa em uma Republica Constitucional, como é a proclamada República brasileira.

  No mesmo sentido, também registramos em outras oportunidades2, tradição e modernidade no Brasil não se sucederam ou se sobrepuseram, como aconteceu em outras sociedades ocidentais, mas convivem conosco em uma conformidade ambígua. Possuímos discursos e práticas que fazem, reiteradamente, do novo a reafirmação do velho, no sentido de travestir práticas tradicionais e hierárquicas no campo do Direito com discursos igualitários, universais e inclusivos. Como se pode ver, dualidades há muito superadas em outras sociedades ocidentais - tais como desigualdade e diferença, direito e privilégio e as transformações das noções de honra em dignidade, na passagem do Antigo Regime (absolutismo monárquico) para a sociedade burguesa moderna - ainda persistem no Brasil, evidenciando que só́ o exame mais acurado das contradições, dos dilemas e dos paradoxos verificados entre os discursos normativos e as práticas judiciárias permite compreender melhor o campo do Direito brasileiro e seus efeitos na sociedade.  

  Assim, mais uma vez estamos diante de um “museu de grandes novidades” no Direito brasileiro, onde se muda para não mudar, onde aquilo que aparentemente soa como igualitário, moderno e disruptivo é, na verdade, desigual, antigo e permanente.  

* Rafael Mario Iorio Filho, Michel Lobo Toledo Lima e Roberto Kant de Lima, respectivamente pesquisadores e coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br)

  1 Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: I - os ministros de Estado; II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia; (Redação dada pela Lei nº 3.181, de 11.6.1957) III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados; IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito"; V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; (Redação dada pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001) VI - os magistrados; VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; VIII - os ministros de confissão religiosa; IX - os ministros do Tribunal de Contas; X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos. (Redação dada pela Lei nº 5.126, de 20.9.1966) § 1o A prisão especial, prevista neste Código ou em outras leis, consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum. (Incluído pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001) § 2o Não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento. (Incluído pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001) § 3o A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana. (Incluído pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001) § 4o O preso especial não será transportado juntamente com o preso comum. (Incluído pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001) § 5o Os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos do preso comum. (Incluído pela Lei nº 10.258, de 11.7.2001)

  2 AMORIM, M. S; BAPTISTA, B. G. L.; LIMA, M. L. T; LIMA, R. K. de; SILVA, F. D. L. L. da. Apresentação: O Direito em Perspectiva Empírica: Práticas, Saberes e Moralidades. Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, N. 51, 2021; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti; DUARTE, Fernanda; IORIO FILHO, Rafael Mario; LIMA, Michel Lobo Toledo; LIMA, Roberto Kant de.   A justiça brasileira sob medida: A pandemia no Brasil entre direitos e privilégios. Revista Fórum Sociológico da Universidade NOVA de Lisboa, v. 1, p. 1-18, 2021.

 

Estátua da Justiça no prédio do STF em Brasília (Foto: REUTERS/Ricardo Moraes)

 

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Claúdio Salles

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