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Claúdio Salles

Claúdio Salles

RESUMO

A cidade do Rio de Janeiro tem sido palco de conflitos e processos de mobilização política de religiosos de matriz afro-brasileira, que reivindicam políticas públicas voltadas ao direito de expressar sua religiosidade no espaço público. O objetivo deste artigo é o de problematizar, a partir de distintas experiências etnográficas, como se dá o processo de construção de discursos relacionados à reivindicação de direitos, envolvendo grupos cuja socialização política é distinta daquelas observadas entre grupos considerados mais “engajados” dos movimentos negros, mas cujas ações também produzem resultados na constituição de um campo político que inclui a dimensão religiosa. Neste sentido, produzimos uma reflexão acerca dos distintos e múltiplos modos de fazer e pensar a política, tomando como objeto a invenção de uma tecnologia de governo, deveras introjetada na vida social e nas práticas profissionais, que são as reuniões, e suas derivações, aqui associadas a eventos públicos. Ao tratá-las como mecanismos de governo foi possível analisar como os discursos acerca da cidadania são apresentados por seus representantes oficiais (policiais, políticos, professores, funcionários públicos, etc.) e apreendidos pelos religiosos de matriz afro-brasileira em dois contextos etnográficos distintos, que podem ser pensados como equivalentes na medida em que engendram práticas e gramáticas próprias.

Palavras-Chave conflitos; mobilização política; espaço público; religiões afro-brasileiras

ABSTRACT

Rio de Janeiro has been the stage to conflicts and the political mobilization of African-Brazilian religious leaders demanding public policies to protect their right to express their religions in the public space. The paper intends to problematize, based on different ethnographic experiences, how the development of this rights-claiming discourse - involving groups whose political socialization process is different from that of supposedly more “engaged” groups of the black movement, but whose actions also produce results in terms of including religion politically - takes place. Therefore, this paper is an evaluation of the multiple ways of doing and thinking politics via a technology of government that truly permeates social life and professional practices, that is meetings (and similar strategies) associated to public events. By understanding them as mechanisms of government, it was possible to analyze how the discourse of official representatives (policemen, politicians, teachers, civil servants, etc.) is put forth and how it is understood by religious leaders of African-Brazilian religions in two different ethnographic contexts, which may be considered similar and equivalent because they stimulate their own practices and grammars.

Keywords conflicts; political mobilization; public space; African-Brazilian religions

Nosso objetivo neste artigo é problematizar, a partir de distintas experiências etnográficas, como se dá o processo de construção de discursos relacionados à reivindicação de direitos, envolvendo grupos cuja socialização política é distinta daquelas observadas entre grupos considerados mais “engajados” dos movimentos negros, mas cujas ações também produzem resultados na constituição de um campo político que inclui a dimensão religiosa. O propósito é produzir uma reflexão acerca dos distintos e múltiplos modos de fazer e pensar a política, tomando como objeto a invenção de uma tecnologia de governo, deveras introjetada na vida social e nas práticas profissionais, que são as reuniões, e suas derivações, aqui associadas a eventos públicos. Ao tratá-las como mecanismos de governo é possível analisar como os discursos acerca da cidadania são apresentados por seus representantes oficiais (policiais, políticos, professores, funcionários públicos, etc.) e apreendidos pelos religiosos de matriz afro-brasileira em dois contextos distintos, que podem ser pensados como equivalentes.

Em 2007 Daniel Cefaї publicou a obra Pourquoi se mobilise-t-on?. Les théories de l'action collective, na qual apresentava uma proposta de análise das mobilizações coletivas destacando alguns eixos analíticos: o desenvolvimento de uma sociologia dos “regimes de ação”, a retomada da noção de “público”, a concepção das redes e das organizações como arenas de experiência e de ação, e uma abordagem sobre a cultura voltada às experiências individuais e coletivas. O autor (Cefaï 2007) narrou como a sociologia “pragmática” afetou as Ciências Sociais na França, sem que, no entanto, atingisse a sociologia dos movimentos sociais, que se manteve presa a modelos interpretativos que tendiam a reduzir as iniciativas de mobilização coletiva às ações racionais, motivadas por interesses, impossibilitando compreender as complexas teias que envolvem as pessoas e os coletivos que desse processo se originam, bem como as situações que são reveladas. Sua proposta pode ser resumida, então, em compreender as mobilizações coletivas a partir de sua constituição, por diversas maneiras de envolvimento, o que pode resultar em processos coercitivos nem sempre transparentes aos atores, ocultando as dimensões morais e afetivas que engendram esses processos.

Embora este artigo não se filie à sociologia pragmática, é preciso ressaltar que essa abordagem nos inspirou, na medida em que tornou possível a descrição de algumas experiências coletivas; no caso, processos de mobilizações, conflitos e configurações institucionais relacionados à promoção de cidadania e desenvolvimento de políticas públicas envolvendo religiosos de matriz afro-brasileira na cidade do Rio de Janeiro. Tomaremos como foco as interações com diferentes atores do poder público na construção de uma série de dispositivos de disciplinamento dos comportamentos e dos discursos1 (Foucault 1996). Tomamos como ponto de partida a análise de reuniões regulares realizadas por dois grupos, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e o grupo Elos da Diversidade, que têm em comum a apresentação de demandas por respeito ao direito à liberdade religiosa e ao uso do espaço público2 para a realização de suas práticas religiosas. Tal escolha permite apresentar processos de aprendizado de uma gramática cívica que embasa a busca por direitos, cuja principal distinção está na inclusão da dimensão religiosa como uma variável importante em contraposição às abordagens marxistas que durante anos influenciaram os movimentos negros, que deslegitimava o tema como parte do debate público, assim como também deslegitimava as questões de gênero.

Privilegiamos a análise das reuniões por considerar que favorecem uma abordagem situacional que privilegia a explicitação dos conflitos, ao mesmo tempo em que revela os processos de construção de uma esfera pública e das ações dos sujeitos responsáveis pela construção dos discursos (Agier 2011; Van Velsen 1987). Constitui-se, portanto, como um lugar de discussão, no qual os diferentes atores têm a possibilidade de debater ideias com os demais. Construir uma “pauta”, com o objetivo de alcançar um ponto final comum, pressupõe a produção de algum consenso e a existência de simetria entre os participantes. Caso seja bem-sucedida, a reunião, além de gerar um consenso, deve propiciar algum resultado, preferencialmente uma intervenção no espaço e esfera públicos. Espera-se, principalmente, estimular a presença do maior número de pessoas nos atos públicos, como um mecanismo de pressão para as demandas requeridas. Como observou Comerford (1999), no âmbito de organizações de trabalhadores rurais, as reuniões se configuram não apenas como um espaço de tomada de decisão, mas também de construção de sociabilidades e diferentes formas de participação dos seus membros.

Há condições necessárias para se construir uma agenda comum, das quais destacamos os fatores internos, como, por exemplo, a participação de representantes considerados "legítimos", e externos, tal como a capacidade de dar maior ou menor visibilidade aos problemas e deliberações. É importante esclarecer que essa simetria entre os participantes se constrói de forma retórica, a partir do prestígio pessoal (Comerford 1999) dos que detêm o controle sobre as decisões e dos que se encontram numa situação inferiorizada naquele dado contexto. Como isso se dá na prática é o que pretendemos apresentar adiante.

Os dados que orientaram nossas interpretações são resultados de etnografias de dezenas de reuniões das quais participamos junto a estes dois grupos distintos3 ao longo dos anos de 2008 a 2014. A observação das reuniões possibilitou refletir quais e como as estratégias políticas são mobilizadas pelos integrantes para promoverem suas agendas políticas, tendo como argumentos principais a publicização do sofrimento das “vítimas de intolerância religiosa” no caso da CCIR, e a vinculação das “deidades”4 afro-brasileiras aos elementos da natureza, pelo Elos da Diversidade, como uma forma de legitimar o uso religioso dos espaços naturais para as práticas rituais. A articulação entre os saberes político e religioso, nos dois casos, permite-nos problematizar que a separação entre esses campos é tênue, permeando todos os processos de formulação de políticas públicas.

Apesar de terem dinâmicas e objetivos próprios, as reuniões analisadas podem ser compreendidas como espaços de constituição de saberes por meio de dispositivos de regulação dos comportamentos e, especialmente, dos discursos dos participantes. Nossa abordagem, portanto, pretende demonstrar como a formulação de uma agenda político-religiosa pode ser tratada como equivalente ao processo de “construção da cidadania”, cujo foco está na “conscientização” de direitos partilhados entre os membros dos dois grupos analisados, descortinando um modo próprio dos religiosos de matriz afro-brasileira de participar da vida política na cidade do Rio de Janeiro. Tal perspectiva permite pensar a diferenciação e complexidade das agendas que se unem no compartilhamento da “crença” no Estado como uma instância capaz de administrar a diferença e garantir o status de sujeitos políticos aos religiosos de matriz afro-brasileira que, historicamente5, foram desqualificados pelos agentes públicos.

As reuniões dos dois grupos tornaram-se loci prioritários para a análise, uma vez que nelas eram explicitados os conflitos envolvendo os diferentes segmentos que as compunham e as estratégias desenvolvidas para assegurar o diálogo com os representantes do Estado - estratégia consagrada para garantir a legitimidade às pautas traçadas. Consequentemente, as reuniões correspondiam a momentos de encontro, durante os quais todos podem falar, ouvir e ser vistos, a despeito de rivalidades e disputas presentes no campo religioso6. Nesse sentido, voltamos o nosso olhar para compreender as reuniões como um lócus no qual os participantes eram socializados em uma linguagem política específica - a das demandas por direitos7, através de um sistema de aprendizagem, segundo o qual as falas e os gestos devem ser moldados, a partir de intervenções diretas e indiretas dos demais participantes, na busca de um equilíbrio entre histórias pessoais e discursos políticos legitimados.

Dentre os temas abordados julgamos relevante destacar algumas pautas importantes que compõem o quadro sociopolítico que tem contado com a participação de diversas lideranças religiosas de matriz afro-brasileira: o debate sobre ações afirmativas nas universidades e concursos públicos; o reconhecimento de identidades quilombolas; a luta pela implantação da Lei 10.639/2003; a construção do Estatuto da Igualdade Racial; movimentos de denúncia contra o genocídio da juventude negra; reparação histórica e humanitária para os negros; crítica ao pensamento eurocêntrico; além da intolerância religiosa.

A delimitação desta agenda permite identificar quais são os temas que esses sujeitos utilizam para delimitar o campo do que pode ser considerado como o “político” em contraste ao que não é, sendo deslocado para o campo do “religioso”. Considerado um terreno pantanoso, tudo o que se referia aos ritos era objeto de grande controvérsia, na medida em que poderia representar a prevalência das concepções de um dado grupo em detrimento de outros. A possibilidade de consenso somente parecia possível no que se referia, portanto, quando o “político” pudesse ser “entendido como potência de instituição de capacidades e de direitos (do lado do Estado) e como potência de agir em acordo (do lado do público)” (Cefaї, 2009: 17).

Mas o afastamento do “religioso” não era absoluto nas reuniões. A escolha das datas e locais era, na maioria das vezes, justificada por meio de consultas aos oráculos (búzios, opelé, cartas, etc.). Havia também os pedidos feitos aos Orixás e Entidades, os quais se não fossem atendidos, colocariam em risco o sucesso das atividades. Buscava-se, assim, assegurar o ”axé”, categoria nativa que informa “a energia que anima a vida, que também é o princípio que estrutura as relações entre homens e deuses”. Era este o sentido de cumprir com as “obrigações”. Tratava-se de administrar o plano dos sentimentos (não irritar as divindades), o que resultava em distintas experiências e vivências religiosas. Todas seriam bem-vindas, desde que não se impusesse um modelo único. Era o encantamento da política pública (Boniolo, 2014), ou seja, uma articulação de saberes técnico-científicos dos representantes do Estado à magia, associada à participação dos não humanos, das ações dos religiosos. Essas ações imprimiram marcas na cidade, seja na criação de um calendário próprio de eventos, seja na presença dos ebós8 na paisagem da Floresta da Tijuca. Cada qual a seu modo revelou articulações entre os domínios secular e religioso constitutivos de espaços e esferas públicas de embate e aproximação do “político” e do “religioso”.

Na luta com Xangô, Iansã e Obá: a união improvável em torno de uma causa - o combate à intolerância religiosa

Todas as quartas-feiras, por volta das 16 horas, pessoas de diferentes credos chegavam à Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB), no bairro do Estácio, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Por ser próximo à estação de metrô, o centro espírita tem uma localização valorizada, pois assegura que os religiosos se desloquem com mais facilidade. As lideranças iam chegando aos poucos, mas nem sempre era fácil identificar a que grupo pertenciam. No portão havia apenas um elemento que anunciava o centro espírita: um pequeno cartaz com o nome do templo e os dias das consultas espirituais. Para entrar era preciso tocar a campainha e se identificar pelo interfone.

As reuniões ocorriam no terraço, que fica no terceiro e último andar do pequeno prédio. As cadeiras de plástico ficavam dispostas de frente para a mesa principal, organizadas em cinco fileiras com cerca de seis assentos. A disposição dos móveis para a reunião remetia a uma sala de aula, mas o que ocorreria ali era um evento de outra ordem. Tratava-se da reunião da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), cuja convocação ocorria via correio eletrônico pelo secretário da CEUB que acumulava a função voluntariamente na CCIR.


CCIR
Figura 1 Reunião da CCIR no CEUB - 2013

Em geral, a reunião funcionava como um espaço de compartilhamento de comunicados, comentários e de construção coletiva de documentos a serem divulgados pela CCIR, bem como a divulgação de “casos de intolerância religiosa”9 em diferentes estados do Brasil e na cidade do Rio de Janeiro. Sempre se notava a presença de uma equipe de apoio, composta pelo secretário e outros integrantes que atuavam como colaboradores.

A ambientação favorecia que o espaço da fala ficasse sob controle dos componentes da mesa. A dinâmica se assemelhava a de uma assembleia, na qual se discutiam e/ou resolviam certas questões, do mesmo modo que se traçavam estratégias políticas de intervenção sobre os casos de “intolerância” recebidos. Os participantes podiam variar durante os eventos, mas havia um grupo que estava sempre presente e assegurava o funcionamento da Comissão que, apesar do nome, não possuía nenhuma regulamentação formalizada, fato que era valorizado positivamente pelo “interlocutor”. No seu entendimento, essa estrutura representava uma postura receptiva a todos os grupos religiosos.

A reunião era conduzida pelo interlocutor, que era responsável pela representação política do grupo perante a sociedade. Era ele quem iniciava e encerrava as atividades, controlava o tempo das falas, fazia os contatos com os políticos e com a imprensa. Nas relações cotidianas, notamos que havia um esforço de construir uma imagem de que ele teria uma função apaziguadora entre os diversos grupos que compunham a Comissão. Ele se apresentava como um articulador que tinha como principal instrumento o uso da palavra. Uma de suas principais preocupações era a prudência dos participantes da Comissão diante de qualquer situação do dia a dia. Seu tom de voz era quase sempre sereno e incentivava a todos que se acalmassem antes de qualquer posicionamento diante de eventos polêmicos. Seu papel era, em tese, de porta-voz e não de coordenação política. No entanto, observamos que os papéis se misturavam constantemente e revelavam conflitos junto aos demais integrantes.

A necessidade de parecer imparcial não era, em nossa percepção, uma estratégia, mas sim um recurso político para ocultar as assimetrias entre os componentes da Comissão. Este fato era importante porque revelava como se dava o convívio (ou conflito) entre diferentes hierarquias religiosas, uma vez que o ‘interlocutor’ da CCIR era entendido como representante público das religiões afro-brasileiras apesar de ser um sacerdote “mais novo”. Vários componentes da CCIR possuíam mais tempo de iniciação nos cultos afro-brasileiros e não aceitavam a ideia de serem “chefiados” por alguém mais novo no “santo”. A hierarquia dos sujeitos era revelada em algumas situações, a partir de relações invisíveis aos pesquisadores, já que na maior parte do tempo não era possível se identificar naquele espaço, pela ausência de signos litúrgicos, os cargos hierárquicos dos participantes. A sociabilidade era marcada por uma relação entre sujeitos mediada pela relação com o sagrado. No entanto, invertia-se o sentido popular do termo religião (religare) que, no plano do discurso era acionado para legitimar o valor da ligação do humano com o divino, para ser transportado a outro sentido, o da demarcação de distinções entre “homens e deuses” (Agamben 2007: 66) ou entre os próprios integrantes do grupo.

As reuniões seguiam razoavelmente a mesma dinâmica e duração, sendo comum o ingresso de participantes atrasados. Participavam da reunião os integrantes da CCIR, convidados ou religiosos que apenas apareciam para relatar situações de “intolerância” com o intuito de buscar orientação dos membros da CCIR. No que se refere à disposição dos participantes pelo espaço, observamos que não era pré-definida, eles chegavam e sentavam-se aleatoriamente. O mesmo não se observava em relação ao “interlocutor”, à dirigente da CEUB, ao secretário e aos representantes de organizações públicas (delegado, promotor, etc.). Estes ficavam equidistantes, distribuídos diante da plateia. Dentre os representantes de organizações públicas, a presença mais constante era a da representação da Polícia Civil, o que é compreensível porque havia a necessidade de assegurar o registro dos casos de intolerância nas delegacias. Esta era uma das metas prioritárias do grupo.

Quando foi criada, em 2008, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa cobrava das autoridades que os direitos de “liberdade religiosa” fossem assegurados sob a forma de planos (estadual e nacional) e cartas-compromisso com candidatos aos cargos eletivos. Num primeiro momento, a “intolerância religiosa” era apresentada por alguns membros como uma forma de racismo. Essa era a posição defendida, principalmente, pelos integrantes dos movimentos negros que dela participavam. A defesa da articulação de parcerias com outras religiões e instituições públicas, para garantir que os pleitos da CCIR fossem atendidos, acabou se tornando uma estratégia política do grupo, que progressivamente foi deixando de ser majoritariamente da umbanda e do candomblé, para assumir uma configuração diferenciada. Essa transformação não se deu tranquilamente. Ao contrário, foi fruto de vários debates públicos acalorados, que resultaram no afastamento de muitos membros, principalmente aqueles ligados aos movimentos negros, que deixaram de participar da Comissão. Por sua vez, esta passou a contar com outros grupos (judeus, muçulmanos, católicos, anglicanos, batistas, entre outros). Também eram presença constante as ONGs, como o Projeto Legal10 e o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP)11, os ciganos e as instituições públicas, geralmente ligadas à defesa de direitos humanos. Essa diversidade de representações era classificada de duas formas: os “membros”, que correspondiam a todos que frequentavam as reuniões e os eventos regularmente, e os “parceiros”, que eram os que apoiavam as atividades, mesmo sem estarem presentes. Acompanhamos semanalmente as reuniões no período de 2008 a 201112, a fim de compreendermos como a Comissão selecionava e assistia os “casos de intolerância religiosa” que chegavam ao conhecimento dos seus membros e os encaminhava aos representantes do poder público, em especial, a Polícia Civil e o Ministério Público. Estes integravam o grupo como convidados da CCIR, com o propósito de que as “vítimas” recebessem um “tratamento adequado” por parte dessas instituições (Boniolo 2011; Miranda 2010, 2012; Pinto 2011; Riscado 2014).

Na dinâmica das reuniões, após a discussão de todos os itens da pauta, o “interlocutor” convidava, quando havia alguma “vítima” presente, para que esta ficasse de pé diante dos presentes e contasse em pormenores o que havia ocorrido. Era considerada vítima pelos membros da CCIR toda pessoa que tivesse sofrido algum “ato de intolerância religiosa”, tais como xingamentos, ameaças e agressões motivados por questões religiosas, ainda que a religião não fosse o motivo do desentendimento entre os envolvidos.

As lágrimas e a emoção na descrição das violências vividas e os comentários de indignação dos demais membros marcavam essa etapa da reunião. No entanto, nem sempre era consensual que a história narrada se tratava mesmo de um “ato de intolerância religiosa” perante os integrantes da CCIR. Diversas perguntas eram direcionadas à vítima para esclarecer as dúvidas que a história suscitara, desde a relação com o suposto agressor até o tratamento recebido nas instituições públicas. Era constante a preocupação com relação ao registro do fato na polícia, seguido pela preocupação de que tivesse havido a “correta” tipificação do registro de ocorrência, isto é, se o mesmo fora tipificado segundo a Lei Caó13.

Em meados de 2010, Mônica14, funcionária de um banco privado na cidade do Rio de Janeiro, contou em detalhes a todos os membros da CCIR o que ocorrera no ambiente de trabalho. No decorrer da história, chorava relembrando os momentos em que fora hostilizada por uma colega de trabalho, que a chamava de macumbeira, “aquela que jogava pozinho na mesa dos outros”. Ao final, disse que registrou a ocorrência na delegacia. No entanto, afirmou que o documento fora tipificado como “ameaça”, e não como “intolerância religiosa”. Assim que terminou de falar, o interlocutor da Comissão perguntou se alguém possuía alguma pergunta. Em seguida, destacou que havia uma disputa pessoal nesse caso, no qual a pessoa a estigmatizava, chamando-a de macumbeira. Aconselhou que o sindicato dos bancários procurasse o Ministério Público do Trabalho (MPT) e que chamassem o banco para uma conversa. Achou, também, prudente que a CCIR marcasse uma reunião com a direção do banco para ouvir “a outra parte”, antes de tomar qualquer atitude.

Semanas depois, foi enviado um e-mail comunicando que os membros da CCIR encontrar-se-iam com o procurador do MPT com o objetivo de oficializar a primeira denúncia de “intolerância religiosa” no ambiente de trabalho. A mensagem informava ainda que representantes do banco haviam sido convidados a comparecer à reunião semanal da CCIR. Na breve descrição que se seguia aos compromissos da CCIR, constava o informe de que Mônica acusava o banco e uma colega da mesma agência de discriminação religiosa. Na mensagem, Monica aparece como “vítima” e afirmava que sofrera uma ameaça e uma agressão verbal por parte de uma colega evangélica.

Assim que Mônica chegou à Comissão, o interlocutor achou prudente conversar com os representantes do banco antes de formalizar uma acusação. Ninguém duvidava da história contada por Mônica, mas precisavam decidir sobre como agir. Isso incluía discutir com o delegado da Polícia Civil as possibilidades da retipificação do registro de ocorrência e recorrer aos conhecidos que pudessem ajudar no caso. No decorrer das semanas, a história deixou de ser apenas entre Mônica e a colega de trabalho e passou a envolver também o banco. Entretanto, precisavam agir com precaução - atitude requerida pelo interlocutor diante de qualquer circunstância. Mônica aos poucos foi se tornando vítima de um ato de discriminação religiosa praticado por uma colega de trabalho, cuja religião servia para dar visibilidade à pauta dos integrantes da CCIR.

O caso de Mônica ilustra a importância do espaço da reunião na produção de discursividade (Foucault 1996). O “interlocutor”, uma das lideranças do grupo, era considerado uma pessoa qualificada para dialogar com outros atores dado o seu passado em movimentos sociais e política partidária. Além disso, ele era capaz de acalmar os integrantes da CCIR nos momentos de exaltação e incentivar que estivessem presentes em todas as convocações feitas. Cabia ao “interlocutor” estar presente em todos estes momentos, já que a maioria dos integrantes da Comissão não se julgava com as competências necessárias para conversar com os representantes de outras instituições, públicas ou privadas, porque não dominavam os códigos nem as categorias destes ambientes. Eram, portanto, “excluídos” do debate. Não bastava “exigir”, mas saber como fazê-lo: como falar, quando falar e com quem falar foram capacidades adquiridas pelo interlocutor ao longo de sua trajetória como militante no movimento negro e, agora, na “luta contra a intolerância religiosa”.

Além disso, uma das estratégias da CCIR para mobilizar mais pessoas “contra a intolerância religiosa” era fazer com que “as pessoas acreditassem na existência da intolerância”, como explicava o interlocutor. Por isso, uma das atividades desenvolvidas pela CCIR era estimular o registro policial como preconceito ou discriminação religiosa. Caso o registro não fosse feito pelos policiais, os integrantes da CCIR se articulavam para retornar à delegacia com a pessoa a quem foi dirigida a agressão para pressionar pelo registro alternativo. Nesses casos era comum a divulgação do ato nas mídias e redes sociais.

Nessas circunstâncias, o interlocutor pedia a todos que trajassem as vestimentas religiosas para dar visibilidade às demandas dos religiosos. Os membros da Comissão compareciam antes do horário marcado e esperavam do lado de fora junto com a vítima e seus familiares, que tanto poderiam ser a “família de santo” como seus parentes biológicos. Quando o interlocutor chegava, ele e a vítima entravam para conversar com o delegado. A imprensa era chamada, pelos próprios integrantes da CCIR, que enfatizavam a importância dos meios de comunicação na divulgação dos eventos, a fim de funcionar como mais um instrumento para cobrar das autoridades respostas às agressões.

Por vezes, quando o registro já havia sido realizado, o delegado que acompanhava a Comissão entrava em contato com o encarregado do caso para conversar sobre a forma como o documento fora feito. Segundo ele, muitos policiais desconheciam a Lei Caó pela mesma não ter sido incluída no sistema15 da Delegacia Legal16, comprometendo o enquadramento dos delitos. Após as manifestações nas delegacias, era comum retornar-se às reuniões para avaliar o andamento do caso ou seguir com a construção de pautas políticas.

Ao longo dos anos, a dinâmica da reunião passou por muitas alterações, mas foi possível identificar alguns momentos constantes:

Fase preparatória que antecede a atividade: onde há uma a interação livre entre os participantes;

Apresentação do tema da reunião: é precedido por uma discussão sobre a conjuntura apresentada pelo “interlocutor” (sem controle de tempo), que depois libera a palavra aos demais (com algum tipo de controle de tempo);

Deliberação e encaminhamentos com divisão de tarefas;

Encerramento da sessão, geralmente sucedida pela composição de pequenos grupos, que seguiam discutindo e deliberando acerca da pauta, bem como a manifestação de impressões acerca da reunião.

Todas as ações eram debatidas e gestadas (Souza Lima 2002) nas reuniões do grupo com o propósito de tornar as vítimas “conscientes” de que as agressões vividas eram fatos criminosos e como tal deveriam ser tratados pelos representantes do Estado. Também era uma estratégia convencer aos demais que os “atos de intolerância religiosa” poderiam acontecer com qualquer um, por isso, o sofrimento das vítimas era mobilizado como um discurso valorizado17 para aproximá-las dos demais religiosos, despertando-lhes um sentimento de solidariedade a fim de sensibilizar os variados setores da sociedade. No entanto, não se podia exagerar na exposição dos religiosos, sendo necessário incorporar, progressivamente, um discurso político que valorizasse “o direito de cidadão” para “exigir” dos representantes do poder público que as agressões físicas e simbólicas fossem criminalizadas, de modo a confirmar oficialmente a existência da “intolerância religiosa” no Brasil. Era comum citar a “ invisibilidade do racismo na sociedade brasileira” para reforçar a necessidade de “provar que a intolerância” era o tema central das discussões do grupo.

Segundo a assessora de comunicação da CCIR, nos primeiros anos de sua existência, a estratégia era veicular o “sofrimento das vítimas” a partir da criminalização da “intolerância religiosa” e da divulgação da Lei Caó:

Trabalhamos com o sofrimento de centenas de pessoas porque tínhamos dois pontos-chaves. Primeiro, os advogados não tinham condições de atuar nesses casos porque não tinham conhecimento da legislação e nem sabiam quais eram os mecanismos em que o crime poderia acontecer. Segundo, ninguém sabia o que era intolerância religiosa. Bater em macumbeiro é a coisa mais natural do mundo. Chamar alguém de macumbeiro na rua é muito normal. Proibir uma criança de entrar de ojá numa sala de aula é normal. Chutar macumba na rua é normal porque nunca fomos cidadãos (Assessora de Comissão da CCIR - notas de trabalho de campo).

A construção de uma narrativa que destacasse a “intolerância religiosa” era a chave para articular os religiosos de matriz afro-brasileira, bem como os demais participantes de outros credos, já que todos poderiam ser alvo. A universalização do fenômeno era a estratégia possível para lidar com as diferenças inexpugnáveis.

Essas ações, no entanto, só eram possíveis na medida em que o domínio dos discursos políticos era apreendido pelos integrantes da Comissão. Nas situações de interação entre os integrantes da CCIR e destes com os representantes do poder público, a produção de um discurso aglutinador não pode ser compreendida apenas como um mecanismo de comunicação que pudesse expressar os “atos de intolerância religiosa”, mas também como o estabelecimento de uma linguagem em que todos se reconhecessem e que fosse capaz de atualizar as relações de força dentro do campo político-religioso carioca (Bourdieu 2008), ainda que os membros da CCIR, da Umbanda e do Candomblé, estivessem cientes do lugar destinados a eles dentro desse campo - ser um grupo minoritário, estigmatizado e marcado pela discriminação racial.

O que se observou foi a construção de uma gramática que valorizava o consenso entre as religiões, mesmo quando na prática ele se mostrava inviável. A narrativa construída a partir da ideia da “intolerância religiosa” como justificação (Boltanski e Thevenot 1991), ou seja, como fator de união de diferentes grupos religiosos que participam da CCIR, funcionava como estratégia de aglutinação, mas ela era subsumida na estratégia de privilegiar a articulação de processos decisórios que excluíam alguns atores sociais.

Essas estratégias de mobilização eram estruturais na organização de dois grandes eventos durante as reuniões da CCIR: a Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa e o Cantando a gente se entende.

A Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa tem sido realizada anualmente no mês de setembro, desde 2008, na orla de Copacabana, escolhida por ser um lugar de importância histórica nos ritos de fim de ano, de oferendas à Iemanjá, e por ter visibilidade internacional. Todo ano a CCIR elege um tema que será apresentado em faixas e cartazes carregados por integrantes da Comissão durante o caminho percorrido.

O cortejo é dividido por cartazes (Fig. 3), que tanto apresentam os grupos que participam como servem para cobrar dos representantes do poder público a correta tipificação dos registros, segundo a Lei Caó ou a defesa da implantação da Lei 10.639/2003. Ao longo do percurso, os oradores gritam palavras de ordem (“eu tenho fé”; “quem é de axé diz que é”; “quem é de axé vota em quem é de axé”) e convidam participantes para discursar ou para cantar. Os oradores e convidados especiais sobem nos carros de som, alugados pela organização do evento (Fig. 2).


Ana Paula Miranda
Figura 2 Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa, Copacabana - RJ, 2010


Ana Paula Miranda
Figura 3 Concentração da Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa, Copacabana - RJ, 2010

O outro evento organizado pela Comissão é o Cantando a gente se entende, uma atividade de “confraternização cultural e inter-religiosa” que ocorre desde 2013 na Cinelândia (centro da cidade do Rio) e no Parque Madureira (zona norte da cidade) para “cantar em defesa da paz”. O evento, que ocorre no dia 21 de janeiro - Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa18 - é promovido pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), com o patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro e apoio da Rede Globo, que costuma liberar a participação de artistas - que não cobram honorários. Entre as apresentações dos artistas, os mestres de cerimônia abrem espaço na programação para a fala de representantes dos segmentos que compõem a CCIR. Estes fazem rápidas intervenções contra a “intolerância religiosa”.

CCIR
Figura 4 Público assistindo o Cantando a gente se entende - 2014


CCIR
Figura 5 Palco - Apresentação de Arlindo Cruz no Cantando a gente se entende - 2014

A principal diferença entre os eventos está no público. A Caminhada é uma atividade pública que mobiliza os próprios integrantes das religiões de matriz afro-brasileira, que recebem a adesão de outros religiosos, manifestantes de diferentes movimentos sociais e integrantes de partidos políticos. Já o Cantando é voltado à sociedade civil (Fig. 4), uma vez que tem como atração principal a apresentação de artistas (Fig. 5), cujo próprio pertencimento religioso é destacado para ressaltar a construção da defesa da liberdade religiosa. A participação do artista Arlindo Cruz, que foi convidado por ser do Candomblé e não ocultar essa identidade, merece ser destacada, já que ele próprio foi alvo de mensagens na internet que o acusavam de estar com problemas de saúde por causa de sua religião19.

A realização desses eventos, e tantos outros, é precedida por intensa organização das atividades, pela distribuição das tarefas entre os religiosos, configurando um exercício do poder coletivo que expressa uma mobilização em prol dos direitos civis que não se resume a protestos nas redes sociais. Porém, nem tudo é simples. Em todos os anos de organização dos eventos um mesmo obstáculo tem se apresentado: a resistência do Corpo de Bombeiros em emitir a licença final para a realização da Caminhada. A instituição, juntamente com a Prefeitura da cidade, exige a presença de uma estrutura médica (profissionais de saúde, ambulâncias, macas, tendas, etc.) (Fig. 6), cujo orçamento pode chegar a cerca de vinte mil reais ou mais. Em todas as ocasiões, a solução para o problema está no acionamento de redes de contatos políticos e institucionais, o que inclui a conquista de notas em grandes jornais para dar visibilidade ao conflito.


Ana Paula Miranda
Figura 6 Ambulância contratada para dar suporte durante a Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa, Copacabana - RJ, 2010

A opção de divulgar alguns problemas e ocultar outros, inerentes ao processo de construção de eventos, revela uma forma de articulação política que coloca em jogo distintas expressões de criatividade, que subvertem os papéis pré-estabelecidos. Assim, torna-se possível aceitar que alguém que, na hierarquia das religiões seria considerado “um mais novo”, possa estar à frente “dos mais velhos”, do mesmo modo que os religiosos assumem o papel de mestre de cerimônias nos eventos públicos, em palcos em que os políticos (deputados, vereadores, etc.) são geralmente interditados, pois o destaque devem ser as lideranças religiosas, as vítimas e os artistas.

Ao longo dos anos, as lideranças religiosas que compõem a CCIR mudaram. Os que permanecem revelam que a constituição desse movimento social se caracteriza por ser policentrada. A convivência de muitas tradições religiosas, com suas respectivas hierarquias, resulta na construção de uma organização que não pode ser totalmente centralizada, pois representaria a submissão de um grupo a outro. A possibilidade de se unir em público torna-se possível apenas porque há uma negociação das identidades coletivas em torno de uma política mais centrada nas situações vividas no cotidiano - as discriminações motivadas pela intolerância religiosa e pelo racismo - como o ponto de união entre os sujeitos.

A relação com os representantes de organizações públicas era ambivalente. A interação com esses atores permitiu identificar que a busca por direitos era negociada visando à conquista do reconhecimento de que os religiosos de matriz afro-brasileira não usufruíam dos direitos do mesmo modo que outros religiosos. Embora a ideia de igualdade esteja presente no discurso oficial do Direito brasileiro, os religiosos envolvidos reconheciam que as práticas de poder revelavam formas de discriminação das vítimas, em função de suas identidades religiosas e étnico-raciais. Nesse sentido, a marca que o movimento foi capaz de deixar na cidade, no campo político, com a constituição de um movimento social legitimado, apontou como necessidades e aspirações o direito ao tratamento igualitário, mesmo estando consciente de que os indivíduos provavelmente não alcançassem o que se desejava.

Na luta com Oxossi, Ossaim e Logunedé: a articulação de forças na sacralização da natureza

Semanalmente, às quintas-feiras, os integrantes do Elos da Diversidade20 se reuniam às 10 horas em uma das salas do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O grupo era formado por religiosos de matriz afro-brasileira, professores universitários, funcionários da Superintendência de Educação Ambiental da Secretaria do Estado do Ambiente (SEAM/SEA), representante do Movimento Inter Religioso (MIR) e ex-funcionários do Parque Nacional da Tijuca (PNT)21.

O número dos membros que constituíam o núcleo da equipe variou entre nove e 11, durante o período em que o projeto foi administrado pela SEA. Cabiam a eles, principalmente aos coordenadores, as decisões a serem tomadas, auxiliados por uma equipe de apoio, composta por uma secretária, uma advogada, uma contadora, duas produtoras de eventos, um responsável pela logística dos eventos (comidas e combustíveis para os veículos) e um assessor de comunicação. Além destes, dez religiosos, considerados os “mais tradicionais” da região metropolitana do Rio de Janeiro, compunham o grupo. Embora as respectivas participações ficassem restritas aos eventos promovidos para o público externo ao Elos, a influência destes sacerdotes de Umbanda e Candomblé era a garantia de credibilidade do projeto perante aos demais religiosos.

A sala com cerca de 20 m², na qual acontecia a reunião, tornava-se pequena pela presença de mesas, cadeiras e armários para comportar os materiais do projeto, além dos equipamentos e documentos da própria universidade. O ambiente cercado por ficheiros, papéis, folders e livros era contrastado por cartazes de eventos religiosos e lembranças de festividades afro-brasileiras.

As conversas sobre os mais variados assuntos antecediam as pautas das reuniões que eram enviadas semanalmente pela secretária. Conversas sobre eventos ocorridos durante a semana, comentários sobre políticos, religiosos e integrantes de movimentos sociais, histórias sobre as divindades afro-brasileiras e trajetórias pessoais transformavam o espaço num ambiente informal. Tudo isso ocorria enquanto aguardavam a chegada da representante da Secretaria do Estado do Ambiente para iniciar a reunião.

Apesar de não haver lugares pré-definidos, a disposição dos participantes ao redor da mesa explicitava diferentes níveis de vinculação. Os mais próximos ao centro eram os que chegavam mais cedo e os que constituíam o “núcleo” do projeto. Aqueles que se sentavam próximo às pontas, e que geralmente permaneciam a maior parte do tempo em silêncio, eram criticados por um menor engajamento ao projeto. As críticas não eram públicas, surgiam em comentários quando os membros não estavam presentes. Cabia a um dos coordenadores evitar a explicitação dos conflitos e administrá-los. Todos os participantes recebiam um pagamento mensal do projeto, exceto os “mais velhos” que recebiam uma ajuda de custo para o deslocamento nos dias de eventos.

No decorrer do projeto, algumas pessoas foram desligadas do grupo devido a “pouca mobilização”, outras foram incorporadas para “avançar com a pauta”. Os integrantes que foram agregados posteriormente ou aqueles que faziam parte da equipe de apoio ocupavam as cadeiras distribuídas pela sala.

O objetivo das reuniões, acompanhadas durante o período de novembro de 2012 a março de 2014, era planejar e definir as atividades que deveriam ser executadas a partir de dois propósitos: consolidar as etapas previstas no projeto de criação do Espaço Sagrado da Curva do S22 e realizar, ou apoiar, eventos que divulgassem o projeto e a relação das deidades afro-brasileiras à natureza e à sua preservação (Boniolo 2014), conforme um calendário aprovado pelo grupo. Além disso, discutia-se como poderiam oferecer apoio em cerimônias realizadas pelos integrantes, tais como as comemorações de datas religiosas, e aos demais parceiros23, bem como na celebração de certas datas não religiosas, em especial, os eventos relevantes para os ambientalistas (o Dia Mundial da Água e o Dia da Mata Atlântica). Todos os eventos tinham como finalidade ressaltar a dependência das religiões afro-brasileira com a natureza e a preservação desta como garantia de continuidade das práticas religiosas.

O momento inicial da reunião (apresentação dos pontos da pauta) era marcado por uma maior informalidade. As reuniões eram controladas pela superintendente, que também coordenava o Programa Ambiente em Ação, do qual o Elos da Diversidade era integrante. A gerência do Programa Ambiente em Ação incluía ainda uma coordenadora acadêmica, função que era ocupada por uma professora da UERJ. O Elos da Diversidade era coordenado por um professor da UFRJ. Esses três eram responsáveis por gerir o orçamento, executar as metas previstas e orientar as ações dos membros representantes da Umbanda e do Candomblé, bem como gerenciar o restante da equipe. Aos coordenadores do Elos cabiam as tarefas de interlocução principalmente com os representantes do poder público ou com os funcionários do PNT. Os religiosos faziam sugestões sobre as ações e atividades do projeto, mas as decisões eram de responsabilidade exclusiva dos três coordenadores. A relação entre os religiosos e os gestores do programa era complexa. Havia uma preocupação por parte dos coordenadores de valorizar os conhecimentos administrativos e científicos sem desqualificar os conhecimentos religiosos. Ressalta-se que os gestores possuíam vínculos com as religiões de matriz afro-brasileira, o que não evitava que, em diversas situações, os religiosos se sentissem desvalorizados por não terem destaque dentro do grupo e por não serem considerados em função de seu tempo de iniciação, critério fundamental na hierarquia religiosa.

Ao longo dos quase 20 anos24 de existência do projeto, os participantes relataram que sempre se buscou ampliar as parcerias para incluir novos religiosos ao grupo por meio de seminários e oficinas com vistas à legitimação da construção do Espaço Sagrado e das práticas das oferendas em áreas públicas naturais (Fig. 7). Outra estratégia do grupo foi aderir a outros movimentos pela cidade que tivessem a temática da liberdade religiosa como agenda política, tal como o Movimento Inter Religioso e a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. A participação de professores universitários conferia igualmente legitimidade às ações do grupo, seja apontando as desigualdades na garantia dos direitos e/ou assegurando a “seriedade” das demandas perante outros atores, principalmente aos religiosos de matriz afro-brasileira e representantes do poder público, segundo os próprios religiosos que integravam o Elos.


Por Roberta Boniolo, 2012
Figura 7 Oferenda realizada no Espaço Sagrado da Curva do S


Por Roberta Boniolo, 2012
Figura 8 Restos de oferendas depositadas na cachoeira no interior da Curva do S


Por Roberta Boniolo, 2012
Figura 9 Restos de oferendas realizadas no curso d'água que corta a Curva do S

O foco principal do grupo era como lidar com o conflito ocasionado pela presença de restos de oferendas no Parque Nacional da Tijuca (Figs. 8 e 9). Este foi o conflito motivador, a partir do qual diversas instituições e pessoas se mobilizaram para reivindicar o direito de uso da natureza para as práticas religiosas, resultando na criação do Elos da Diversidade, que visou ao projeto de construção de um espaço nas adjacências do PNT, a fim de que os religiosos pudessem deixar as oferendas na natureza sem colocar em risco as demais áreas, visto que, por lei, dentro do parque, os religiosos devem retirar as oferendas após a realização dos rituais25.

Figura 10 Foto de satélite do Espaço Sagrado da Curva do S, 2015

Essa foi a solução que religiosos, professores universitários, pesquisadores, alguns funcionários do PNT e representantes de ONGs encontraram para administrar o conflito decorrente das práticas religiosas no interior do parque, posto que a maioria dos funcionários do parque as consideravam danosas à flora, à fauna e à paisagem. O projeto Espaço Sagrado da Curva do S (Fig. 10) tinha como principal meta a criação de uma série de medidas de infraestrutura, tais como rampas para idosos e deficientes físicos, banheiros, telefone público, sistema de coleta das oferendas, vestiário, sala para eventos e composteiras.

Também eram realizadas oficinas para discutir com os religiosos a possibilidade de “reformulação” das oferendas a partir do uso de elementos biodegradáveis, o que era objeto de grande contestação por religiosos que não faziam parte do grupo, que as consideravam uma interferência do Estado nas religiões, já que as escolhas dos utensílios utilizados seguem também a orientação dos Orixás e Entidades.

Para lidar com aqueles que não aprovavam as sugestões de mudança, os membros do Elos passaram a valorizar as lembranças dos sacerdotes “mais velhos”, de quando eles começaram a praticar a religião, incentivando todos a retornar à prática tal como era no período de suas iniciações ou, ainda, num período mais longínquo, de seus antepassados, em África, quando não se utilizava o plástico, nem o vidro, nem a vela nas oferendas. Esse movimento era visto como um resgate da “autenticidade” do ritual.

Cabe ressaltar que o tema da “autenticidade” é altamente controverso, já que a noção de tradição africana no Brasil, comumente associada à nação nagô (iorubá)26, resulta de uma tensa relação entre o discurso nativo e o discurso científico (Capone 2005), que revela como a constituição de oposições - tradição/pureza X modernização/degeneração - não é facilmente traçável, tendo sido resultado de escolhas dos praticantes e dos pesquisadores que, ao se dedicar aos estudos do Candomblé, acabaram se engajando em algum terreiro e consagrando em suas obras as classificações nativas.

A valorização de um rito de uma África idealizada - sem plástico, vidro ou vela - oculta a complexidade na reflexão acerca das relações entre tradição e poder. Ao estabelecer como se deve construir o ritual, o grupo acabava por produzir uma hierarquização dos terreiros, destacando aqueles que, de alguma forma, estavam vinculados aos grupos mais “tradicionais” e os que seriam os “marmoteiros” ou os “bequeiros”, que são acusados de não seguirem as regras das religiões afro-brasileiras e “modernizarem” excessivamente as práticas religiosas. O confronto entre essas classificações revela uma tensão fundante - a de que o próprio Candomblé é uma adaptação de diferentes cultos provenientes de regiões distintas em África, que apenas se reuniram no Brasil por conta da escravização de populações negras. A permanente tensão resulta, muitas vezes, numa rede de acusações e intrigas em torno da legitimidade e preservação de conhecimentos orais.

Cada casa é uma casa. Não existe no Candomblé uma receita que passa de geração a geração sem se alterar. Mas mesmo assim, se você faz o acaçá de forma diferente, começa a disputa. Tirou foto de orixá? Vai ser chamado de ‘beco’. O tempo de recolhimento é menor? ‘Muita modernidade... Estão estragando a religião!’ ‘Marmota’… (Conversa com ialorixá, notas de campo).

A construção de um grupo para tratar dos ritos, mas, principalmente, dos detritos que restam após sua colocação no espaço público, revela a construção de uma aliança entre religiosos, professores universitários e gestores de políticas públicas que, ao pactuarem alguns discursos, dão visibilidade e acabam legitimando certos terreiros em detrimento de outros, atribuindo-lhes uma relevância e, consequentemente, um poder que os outros não terão. Além disso, a construção coletiva de práticas rituais ecologicamente “corretas” invisibiliza uma lacuna existente entre as práticas rituais cotidianas desses cultos, marcadas pela heterogeneidade deste campo religioso, e a idealização das tradições, que pode ser associada tanto à África quanto à Bahia, para o Candomblé.

O plástico, o vidro ou a vela eram os três elementos considerados pelo Elos da Diversidade como os mais prejudiciais ao ambiente27. Além desses, os funcionários do PNT também consideravam todos os tipos de vasilhames usados nos rituais para servir as comidas aos orixás e entidades como poluentes. Por esse motivo, os integrantes do Elos incentivavam a substituição dessas peças por folhas de bananeiras ou mamona, por exemplo. Tratava-se, nas palavras dos coordenadores, de recomendações, embora a decisão final devesse ser do dirigente da casa, incluindo os objetos usados na constituição das oferendas. Ainda que a questão fosse controversa, ninguém nunca se posicionou publicamente contra as proposições dos membros do Elos, com receio de ser classificado como “poluidor”. Para o Espaço Sagrado, os membros do Elos conseguiram encontrar soluções para o uso desses objetos sem comprometer os recursos naturais e a paisagem. Por outro lado, em outros espaços, era possível ouvir críticas ao projeto por interferir em práticas rituais religiosas estabelecidas segundo as “tradições” locais. Embora essa observação ocorresse “nos bastidores” dos eventos públicos, ela revelava a principal fragilidade do projeto, o qual, ainda que tenha sido bastante eficiente em dar visibilidade ao debate sobre a preservação ambiental, não conseguiu uma maior adesão além dos próprios participantes.

A intervenção no ambiente não se limitava aos ritos. Foi criado um projeto paisagístico, elaborado por arquitetas vinculadas ao Laboratório de Arquitetura, Subjetividade e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Fig. 11). A concepção do projeto era tornar o local, situado às margens do parque nacional, adequado às práticas religiosas, interferindo o mínimo possível no ambiente natural. Os coordenadores do Elos, com a colaboração das arquitetas, pretendiam utilizar plantas vinculadas às deidades afro-brasileiras e pertencentes à Mata Atlântica para fazer a recomposição da vegetação, recuperar os troncos de árvores queimados pelo uso de velas e colocar filtros para reter as oferendas que precisam ser realizadas na cachoeira e no rio, presentes na localidade.

Além de local de realização de rituais religiosos, o grupo pretendia que o Espaço Sagrado também fosse utilizado para a realização de oficinas de “reformulação” das oferendas. Haveria, ainda, um espaço para fazer compostagem com o material que pudesse ser reaproveitado das oferendas. Este tema era bastante controverso, porque dependendo do ritual realizado nada poderia ser aproveitado por estar “carregado” de energias negativas. Questionava-se, portanto, como seria possível saber dentre as oferendas encontradas na localidade quais seriam ou não habilitadas ao reaproveitamento. Previa-se também a escolha de lugares específicos para o uso das velas, preferencialmente longe dos troncos das árvores, bem como a retirada das oferendas por pessoas treinadas por uma equipe vinculada ao projeto após o período ritual estimado para cada uma delas.


Por Roberta Boniolo, 2013
Figura 11 Maquete do Espaço Sagrado da Curva do S

Notava-se uma preocupação com a incorporação de valores e princípios religiosos à gestão do projeto, aliados aos princípios ambientais. Isso ficava evidente nos encontros promovidos com os religiosos chamados de Guardiões do Sagrado e da Natureza, que tinham a função de incluí-los na formulação das regras de uso do Espaço Sagrado da Curva do S. Essas reuniões aconteciam fora da universidade, nas próprias casas de santo e terreiros dos sacerdotes, e seguiam as ritualísticas dessas religiões, com cumprimentos, saudações e cânticos às deidades. Nesses espaços, a conversa era iniciada por um dos membros do Elos e, a partir das histórias contadas pelos “mais velhos”, esperava-se preparar um texto baseado nas recomendações dos guardiões sobre os comportamentos adequados em um espaço sagrado, o que posteriormente seria apresentado aos gestores do Parque Nacional da Tijuca. A posição de destaque nas falas era das “guardiãs sacerdotisas”. Os demais presentes se agrupavam em cadeiras ao redor, a fim de escutá-las narrar as histórias que envolviam os deuses e as suas trajetórias de vida. Havia poucas tentativas por parte da superintendente de retomar a pauta do encontro. Neste sentido, as “sacerdotisas” possuíam o controle do tempo das falas e a condução das conversas, de modo distinto do que ocorria na universidade.

Observávamos que estas reuniões eram uma tentativa, por parte dos coordenadores do Elos da Diversidade, de romper com a desconsideração da fala dos religiosos afro-brasileiros, um dos princípios de exclusão do discurso, segundo Foucault (1996). Nestas circunstâncias, a autoridade dos sacerdotes era respeitada, a fim de que seu conhecimento pudesse ser incorporado ao projeto.

É importante salientar que a s relações entre os membros do Elos da Diversidade também eram perpassadas pela agência das deidades afro-brasileiras. A presença constante das divindades era mencionada no que se refere à aproximação das pessoas e na realização de consultas aos orixás, através dos búzios, para saber a decisão a ser tomada, qual caminho a ser seguido. Tais argumentos religiosos acabavam por revelar uma inversão da organização administrativa estatal, deixando claro que o lugar da autoridade durante as reuniões era redefinido em função do assunto tratado - religioso, administrativo ou acadêmico.

Quando as atividades eram para um público não religioso, e algum dos coordenadores fazia um discurso de caráter mais místico, era notável o incômodo entre os demais participantes. Ainda que muitos religiosos demonstrassem simpatia pela defesa das religiões afro-brasileiras realizada por gestores ou professores, outro grupo de religiosos, claramente mais integrados às dinâmicas do debate público, não concordava com esta postura, preferindo demarcar melhor a separação entre o político e o religioso. Deixavam perceber que a postura esperada dos representantes do poder público deveria ser distinta, mais contida e mais formal. Afinal, aqueles que são qualificados para falar devem possuir um comportamento adequado à circunstância que acompanha o discurso (Foucault 1996).

Nas atividades realizadas para os religiosos, a equipe técnica e os coordenadores tinham o cuidado de dialogar com os religiosos e de seguir uma etiqueta religiosa, abaixando a cabeça para beijar a mão das lideranças, pedindo “bênçãos aos mais velhos” e saudando as divindades para lhes rogar ajuda na condução e na concretização do projeto. Por outro lado, era possível notar que os religiosos demonstravam interesse em aprender termos e conceitos científicos para empregar em discursos, quando fossem solicitados ou quando estivessem diante de alguma autoridade política.

Em todas essas ocasiões ressaltava-se que a ligação com a universidade era importante para que os religiosos fossem ouvidos pelos representantes do Estado. Não hesitavam em afirmar os seus direitos e o dever do poder público de assegurá-los. Tomavam o ambiente propiciado pelo projeto, através das reuniões e eventos, como uma forma de aprenderam os discursos político-acadêmicos consolidados, nos quais podiam reconstituir-se como sujeitos de direitos para “reivindicarem” seu reconhecimento na sociedade.

Certa vez, durante uma das reuniões, uma das integrantes do Elos contou entusiasmada como utilizou “um conceito da academia” diante de várias autoridades políticas. Sem entrar em muitos detalhes das razões pelas quais fora convidada a estar presente na solenidade, disse que sentiu necessidade de ir além dos termos religiosos. Lembrou-se do que ouvia nas reuniões e, diante das autoridades públicas, explicou a relação dos orixás com a natureza a partir do uso de conceitos da Geografia Cultural - o “geossímbolo”28.

As reuniões funcionavam, portanto, como espaços de socialização e compartilhamento de discursos que articulavam as temáticas ambiental e religiosa com as gramáticas políticas e acadêmica em função do contexto. A necessidade de se socializar com os termos utilizados pelos movimentos ambientalistas também era reconhecida pela maioria dos religiosos. Eles entendiam que, diante de um cenário conflituoso e de impedimentos de realização das práticas rituais, a universidade era uma ponte para aprenderem a linguagem de reivindicação de direitos para falar sobre a natureza a partir de uma perspectiva religiosa. Ainda que os interesses fossem diferenciados e que houvesse divergências e disputas entre os participantes, pode-se afirmar que o Elos propiciava a construção de uma narrativa político-acadêmica-religiosa que unia religiosos, professores, representantes do Estado, de movimentos sociais e de ONG. Todos sabiam que os discursos produziam efeitos no âmbito de construção e implementação de políticas públicas e que, por isso, precisavam dominar a gramática das políticas públicas para ter acesso e usar os espaços naturais na reprodução das práticas religiosas.

A presença de agentes públicos nas reuniões revela uma forma de governamentalidade (Foucault 2008), que coloca em xeque o paradigma da racionalidade como “princípio organizador” da política (Bobbio 2000). As narrativas construídas pelos participantes do Elos ressaltavam a constituição de um domínio religioso no interior do espaço público como um elemento positivo da política. Tal perspectiva acabava por destacar a necessidade de criação de uma forma de gestão autônoma e complexa desse espaço público, o que pressupunha uma coesão e legitimidade entre os religiosos, que somente poderia ser construída a partir da sacralização da natureza, tendo em vista que não seria possível um consenso em torno das práticas rituais sem que isso representasse a legitimação de um grupo apenas. Assim, a competição presente no mercado religioso representava uma constante ameaça à frágil pactuação construída, a qual seguia, também, ameaçada pela disputa político-partidária, razão da derrocada do projeto, que foi desativado após a troca de governo, quando entrou um novo secretário de estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dimensão política de qualquer discurso pode, às vezes, ocultar as contradições e os interesses dos sujeitos envolvidos na sua construção, seja no campo da ciência ou no campo das políticas públicas voltadas à cidadania. Explicitá-los é justamente a possibilidade de revelar um processo dinâmico de construção cultural que permite superar a ideia de que os religiosos de matriz afro-brasileira não se organizam politicamente.

Este texto teve a intenção de revelar fragmentos de como a multiplicidade de identidades religiosas pode ser negociada entre os atores sociais para dar espaço à construção de discursos para legitimar, ao mesmo tempo em que os inventa, narrativas políticas fundamentadas em práticas religiosas, relacionando alguns pressupostos a uma matriz negro-africana, que por sua vez estaria vinculada a uma tradição mais ecológica, pela relação direta com a natureza. Assim, a identidade político-religiosa afro-brasileira se apresenta publicamente não só como um patrimônio histórico-cultural, mas como parte de movimentos sociais negros que valorizam o Candomblé como a religião do povo negro. Esse processo coincide com a construção da luta contra a intolerância religiosa como um espaço de controvérsias sobre a "dessincretização" do campo religioso, o branqueamento dos terreiros e as tênues fronteiras da realização dos cultos aos Orixás e Entidades no espaço das cidades (Silva 2008). A associação entre “negritude”, “africanidade” e ancestralidade expressa, portanto, uma tensão política no campo religioso “afro-brasileiro”, que resulta na desqualificação pública de práticas religiosas associadas à Umbanda, ao consumo de produtos industrializados, em especial, aos elementos rituais de matriz judaico-cristã, como, por exemplo, o uso de velas nos rituais religiosos afro-brasileiros. Essa tensão resulta numa complexificação cada vez maior das formas de culto, e não na construção de uma ortodoxia religiosa, como desejam alguns. O discurso de "africanização" dos ritos religiosos tem o objetivo de tornar mais potente a afirmação identitária, ao mesmo tempo em que delimita uma outra frente de batalha nas agendas públicas no que diz respeito à realização de práticas religiosas em outros espaços públicos, como os cemitérios, hospitais, etc.

A complexidade da vida religiosa afro-brasileira, ao ser acionada como uma variável fundamental da identidade política, recoloca a questão da separação entre religião e política para revelar a possibilidade de convivência entre “múltiplos arranjos que permitem a adaptação de um modelo ideal à complexidade da prática ritual” (Capone 2005: 29). Como afirma Vagner Silva (2008) o Candomblé sempre esteve localizado nas cidades, mas essas representações das religiões afro-brasileiras na cidade e da cidade resultam em estratégias variadas, no tempo e no espaço, para dar conta das suas respectivas "tradições" e os processos de urbanização.

Ao trazer a religião para o domínio da política pública, os dois grupos rompem com uma abordagem polarizada da laicidade, ao assumir que, no Brasil, o espaço público sempre foi religioso, mas exclusivamente dominado pela tradição judaico-cristã. Ao invés de fronteiras impenetráveis, o que percebemos é uma compreensão de um modo de fazer política que legitima a religião afro-brasileira como um marcador da identidade negra como forma de resposta às agressões, xingamentos, destruições de terreiros e privação de uso dos parques naturais. A valorização do Candomblé neste processo está associada ao papel que passou a ter na construção da

"identidade política do 'povo negro', conforme defendida por diversos segmentos dos movimentos sociais negros na agenda das políticas de ações afirmativas, participando, assim, da reconfiguração do campo religioso e de seus vínculos com a esfera pública" (Sales Junior 2009: 129).

O que se pode observar nos dois contextos etnográficos foi um continumm de ações coletivas no espaço e na esfera públicos. Se num primeiro momento acompanhamos um movimento de caráter mais denuncista, no caso da CCIR, foi o desenvolvimento de muitos debates (virtuais ou presenciais), passeatas/caminhadas, e atos públicos que possibilitaram a inscrição de marcas na cidade. Aos poucos se notam outras formas de ocupar o espaço público, que não substituíram as anteriores. Começaram a aparecer formas de organização coletiva que transcendem os limites das religiões (Candomblé, Umbanda, etc.), as próprias diferenças das práticas afro-brasileiras e as identidades particulares na busca de construção do espaço público, no qual a participação dos religiosos não seja mais a do “mostrar-se ocultando” (Santos 2005), mas o de se unir em público.

Tanto os membros da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa quanto os integrantes do Elos da Diversidade utilizavam as reuniões para discutir estratégias para tornar seus pleitos públicos. Ambos organizavam eventos a fim de divulgar suas demandas e cobrar das autoridades um retorno a elas. As reuniões eram a ocasião para discutir o que seria realizado, onde, quando e quem seriam as pessoas convidadas. Para os dois grupos, os eventos eram atividades grandes, voltadas para um público externo, com a presença da imprensa e de autoridades públicas. As reuniões representam a construção de um novo tempo - o de “cobrar” e “pedir” soluções e, ainda, divulgar suas demandas buscando envolver o máximo de pessoas na “luta”. Nas reuniões, as pessoas que falam em nome do grupo são definidas previamente. O sucesso da atividade demanda que a pessoa possa transmitir a mensagem utilizando um discurso coerente, acompanhado por gestos que emitam segurança. Além disso, as pessoas devem saber o momento adequado para dar as respostas e o tom das mesmas. Portanto, têm que lidar com as circunstâncias e estar preparadas para situações inesperadas.

De maneiras distintas, a CCIR e o Elos constituíram exemplos de organização política que não só envolveram os religiosos, mas que incorporaram princípios e valores religiosos às suas agendas. A diversidade de participantes e de estratégias políticas pôs em xeque uma concepção de que os afro-religiosos não se organizam politicamente, possibilitando pensar que há distintas formas de mobilização que possibilitam construir agendas de modo a atender diferentes interesses, mantendo um vínculo através da religião, delimitando um modo particular de “fazer política”. As estratégias implementadas pelas redes, construídas por sujeitos individuais e coletivos, desvelam uma reconfiguração de dissidências e disputas históricas entre os religiosos, originadas pela competição no campo. Consequentemente, por conta de novas agendas - a luta contra a intolerância e a incorporação do ambientalismo na sacralização da natureza -, as rupturas são transformadas em equilíbrios situacionais provisórios. Unir-se em público representava uma necessidade, mas essa estratégia não pode ser incorporada de forma perene, pois configuraria formas de submissão a grupos adversários. Assim,

“as configurações de tomadas de posição públicas passam por operações de ‘separação’ dos atores de suas redes de ‘posições’ e pela remodelagem de suas paisagens organizacionais, que se temporalizam correlativamente aos debates que fixam as linhas reivindicativas”. (Cefaї 2009: 21).

Embora os dois grupos fossem compostos predominantemente por religiosos de matriz afro-brasileira, os membros da CCIR esforçavam-se para desvincular a presença e ação das divindades dos discursos. Primeiro, por estas serem desconsideradas pelos representantes do Estado; segundo, porque reivindicavam um Estado laico, em que todos teriam o mesmo acesso e garantia aos bens (Miranda 2014); e terceiro, porque diversas religiões passaram a fazer parte da Comissão.

Já o Elos que, durante o período acompanhado, era composto predominantemente por religiosos de matriz afro-brasileira ressaltava em seus discursos a influência dos “orixás” na condução do projeto e da política pública. Com a mudança de governo, que nomeou um secretário ligado a grupos evangélicos, o projeto foi asfixiado. Muitos religiosos passaram a apontar a necessidade de continuidade do projeto com o propósito de implementação do Espaço Sagrado como garantia de um local para a realização das práticas religiosas, o que não aconteceu.

O uso da emoção, para caracterizar a “situação de intolerância” ou para dar ênfase às demandas por reconhecimento de direitos, é um elemento importante para desqualificar os modos tradicionais de se fazer política, que valorizam a racionalidade e a impessoalidade. É, portanto, através da “expressão obrigatória dos sentimentos” (Mauss 1979) que os princípios religiosos são trazidos para a política, visando reencantá-la.

A presença da religião de forma legítima na política é constitutiva do espaço público, bem como dos modos através dos quais os conflitos se explicitam e são administrados fora dos limites dos terreiros, resultando em outras formas de visibilidade e convivência entre os diferentes atores.

Conclui-se que as formas de mobilização dos religiosos analisados constituem os dispositivos dialógicos que levam à assimilação de um problema, até então tratado como privado, a “intolerância religiosa”, para o domínio político como um problema público (Miranda, Correa e Almeida 2017). Tais estratégias põem em questão o sentido da “política liberal que supõe, ao mesmo tempo, a neutralidade do Estado diante das religiões e a oferta de garantias jurídicas à expressão pública das opiniões e crenças” (Montero 2016: 148).

Outra consequência desse processo está associada às formas pelas quais são registradas no espaço da cidade estas ações político-religiosas. Seja em caminhadas, seja na deposição de oferendas no espaço urbano, a cidade é o lugar privilegiado de intercâmbio material e simbólico, no qual se observa uma distribuição desigual de capital simbólico. As queixas contra a realização de oferendas no Parque Nacional da Tijuca são tratadas de maneira diferenciada das queixas contra as celebrações católicas ou evangélicas também realizadas nas dependências do parque. Assim, embora se apresente como uma cidade cosmopolita, fundada nas ideias de universalidade e progresso, o que se vê cada vez mais é a presença de conflitos étnico-raciais e religiosos que clamam por respostas institucionais.

Unir-se em público é, por consequência, uma estratégia de ação que revela diferentes articulações e arranjos entre grupos (religiosos e agentes públicos) na busca de garantir a permanência da religião de matriz afro-brasileira no espaço público. Trata-se de um processo dinâmico e em curso, que não se esgota nesta análise, mas que nos permite afirmar que essas mobilizações possibilitam construir simetrias provisórias por meio de ações interativas.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1Entendemos os dispositivos de disciplinamentos como formas de controle, seleção e organização da produção dos discursos e corpos. Revelam formas de poder, que a sociedade se coloca e também critica. A dimensão técnica dos dispositivos permite compreender como o corpo é manipulado, para se tornar útil e dócil, ao mesmo tempo que afeta a vida coletiva de uma população (Foucault 1999; 2008).

2O espaço público é apresentado por Habermas (1984) como um local no qual as pessoas compartilham, interagem e apresentam seus pontos de vistas. Já a esfera pública refere-se a uma construção discursiva. No caso brasileiro, Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2011) conclui que existe uma desarticulação entre a esfera pública e o espaço público, principalmente quando se refere a situações que envolvem o princípio da igualdade e formas de tratamento igualitário. No caso das religiões afro-brasileiras, há sempre uma argumentação de que os espaços públicos são utilizados por outras religiões, mas que eles não possuem os mesmos direitos.

3Cabe esclarecer que, em algumas situações, acompanhamos as reuniões juntas, mas na maioria das vezes cada uma participou em um grupo. Merece destaque, também, a nossa participação no Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Intolerância e Discriminação Religiosa para a Promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, entre os anos de 2013 a 2015. Essa participação não será objeto de análise neste artigo, mas favoreceu fortemente a construção de nosso argumento, na medida em que vários participantes da CCIR e do Elos integravam o GT.

4A palavra era utilizada no grupo Elos para designar, segundo algumas tradições religiosas, os elementos da natureza (água, terra, ar, fogo) que correspondem ao divino. Aqui ela teria o mesmo sentido que “orixá”, “vodun” ou “inquice”. Salientamos que a mesma palavra poderia ser utilizada para designar as florestas, matas, selvas ou bosques como lugares sagrados, porque lá residem os deuses ou porque lá estavam um geossímbolo específico (uma árvore, pedra, animal), que são venerados como deuses ou espíritos (Boniolo 2014; Corrêa, Costa e Loureiro 2013).

5Sobre a relação com o sistema judicial ver Maggie (1992), Miranda, Correa e Pinto (2017), Silva Junior (2007); sobre o massacre ocorrido em Alagoas, conhecido como o quebra de Xangô, ver Rafael (2010; 2012).

6É importante esclarecer que, nos grupos, havia uma diversidade significativa de religiosos, as quatro conhecidas nações do candomblé, as linhas da umbanda, etc. No que se refere ao pertencimento político, a variedade também era grande. Notava-se uma pluralidade de filiações partidárias, bem como uma variedade de vinculações institucionais a ONGs, movimentos sociais, etc.

7Há que se observar que a pauta discutida tem direta correlação com a pauta apresentada por um dos mais importantes grupos dos movimentos negros, o MNU (Movimento Negro Unificado), que em março de 2017 realizou o 1° Seminário Sul/Sudeste de Formação Política: o impacto das reformas econômicas na população negra; história do movimento negro e suas lutas; racismo e luta de classes; escravidão negras, comissão da verdade e reparações; racismo e a questão parlamentar; negro, educação e cultura; religião de matriz africana; empoderamento da juventude negra; lutas e conquistas LGBT; luta das mulheres negras .

8Categoria nativa dos adeptos das religiões afro-brasileiras para o termo ‘oferenda’, dedicada a algum orixá, com comidas rituais.

9O termo “intolerância religiosa” está associado ao discurso dos integrantes da Comissão como anteposto à liberdade religiosa, associadas às manifestações de falta de respeito às diferenças de crença (Miranda 2010), relacionadas, quase sempre, às “ameaças neopentecostais” caracterizadas pela destruição de terreiros, além das agressões físicas e verbais aos praticantes dos cultos afro-brasileiros.

10O Projeto Legal é uma ONG que atua na área de Direitos Humanos, prestando atendimento sócio jurídico, principalmente, a crianças, jovens e mulheres. Fonte: http://www.projetolegal.org.br/index.php/institucional. Acesso em 18 de setembro de 2015.

11O CEAP é uma ONG ligada ao Movimento Negro e ao Movimento das Mulheres na cidade do Rio de Janeiro. Tem como um dos fundadores o “interlocutor” da Comissão. Fonte: http://ceaprj.org.br/a-instituicao-2/. Acesso em 18 de setembro de 2015.

12Ressaltamos que na composição inicial da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa era possível identificar integrantes de movimentos negros da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, a partir de divergência entre os membros de CCIR quanto a relacionar os “atos de intolerância religiosa” ao racismo, muitos militantes deixaram de participar das reuniões (ver Miranda 2014).

13O artigo 20 da Lei Nº 7.716, de cinco de janeiro de 1989, conhecida como Lei Caó, prevê reclusão e multa para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor etnia, religião ou procedência nacional (Silva 2009).

14O nome foi trocado para proteger a privacidade da interlocutora.

15Em 1997, a Lei 9.459, ou Lei Paim, acrescentou as categorias “etnia, religião ou procedência nacional” ao artigo primeiro da Lei Caó, e inclui também o parágrafo 3º do Artigo 140 do Código Penal, agravando a pena - para reclusão de um a três anos e multa - para a injúria, quando aludir ao uso de elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem (Silva 2009).

16O Programa Delegacia Legal foi implementado nas delegacias do Estado do Rio de Janeiro desde 1999, tendo como objetivo a modernização da Polícia Civil, tanto nas infraestruturas das delegacias, quanto na informatização dos seus registros de ocorrência (Lima 2009; Paes 2006).

17Sobre o sofrimento como narrativa de acesso a direitos, ver Mello (2010).

18A data está associada à morte da ialorixá Mãe Gilda, que faleceu após ver seu rosto na capa do jornal Folha Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, tornando-se a referência nacional na defesa da liberdade religiosa.

19Ver http://www.leiaja.com/cultura/2017/03/22/intolerantes-atribuem-doenca-de-arlindo-cruz-ao-candomble/, acesso em 22/03/2017.

20O Elos da Diversidade era parte de um programa (Programa Ambiente em Ação) da Secretaria de Estado do Ambiente com o objetivo de “promover” ações que relacionassem as práticas rituais de matriz afro-brasileira com a temática da preservação do meio ambiente.

21Localizado na cidade do Rio de Janeiro, o parque corresponde à maior floresta urbana replantada do mundo, com 3.953 ha de Mata Atlântica. Dados disponíveis em http://www.parquedatijuca.com.br/#index. Acesso em 18 de dezembro de 2017.

22A Curva do S situa-se na rua Édson Passos, no Alto da Boa Vista – um bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, ligando as zonas central, norte, sul e oeste.

23Assim como os integrantes da CCIR, os membros do Elos distinguiam as pessoas que participavam do projeto dos parceiros. Estes só compareciam aos eventos quando eram solicitados.

24O projeto de construção do Espaço Sagrado da Curva do S começou no final da década de 1990 com a explicitação do conflito entre religiosos de matriz afro-brasileira e funcionários do PNT provocado pela realização de oferendas nos espaços do parque. Para compreender as diferentes fases e tentativas de implementação do projeto, ver Boniolo (2014), Costa (2008), Nascimento (2013).

25Existem placas dentro do PNT sinalizando que as oferendas podem ser realizadas, mas não podem ser “deixadas”.

26Os principais representantes dessa tradição são os terreiros do Engenho Velho ou Casa Branca, o Gantois e o Axé Opô Afonjá, que concorrem pelo reconhecimento de suas tradições.

27Não há como deixar de considerar que esses objetos não eram tão disseminados nas práticas religiosas quando os primeiros registros dos ritos afro-brasileiros foram realizados por pesquisadores, imortalizados como os “clássicos”. No entanto, deve-se lembrar que contemporaneamente estão incorporados à vida cotidiana. Quem percorre o Mercadão de Madureira sabe que a folha da bananeira pode ser comprada nas barracas de ervas por valores que podem ser mais caros que os potes de plástico importados da China. Isso levanta uma questão interessante sobre a urbanização da cidade, que impacta os terreiros. Se antes estavam em áreas mais afastadas da cidade, cercada por matos e florestas, hoje estão presentes em áreas densamente urbanizadas.

28O geossímbolo representaria a produção simbólica pelo ser humano em um determinado território (Corrêa 2012).

Recebido: 24 de Novembro de 2016; Aceito: 19 de Outubro de 2017

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O Site do InEAC disponibiliza o link para acessar o artigo publicado na Scielo, “Em público, é preciso se unir”: conflitos, demandas e estratégias políticas entre religiosos de matriz afro-brasileira na cidade do Rio de Janeiro; produzido pelas antropólogas Ana Paula Mendes de Miranda e Roberta Baniolo e que trata do tema Religião & Sociedade

O texto está disponivel no endereço : http://www.scielo.br/pdf/rs/v37n2/0100-8587-rs-37-2-00086.pdf

RESUMO

A cidade do Rio de Janeiro tem sido palco de conflitos e processos de mobilização política de religiosos de matriz afro-brasileira, que reivindicam políticas públicas voltadas ao direito de expressar sua religiosidade no espaço público. O objetivo deste artigo é o de problematizar, a partir de distintas experiências etnográficas, como se dá o processo de construção de discursos relacionados à reivindicação de direitos, envolvendo grupos cuja socialização política é distinta daquelas observadas entre grupos considerados mais “engajados” dos movimentos negros, mas cujas ações também produzem resultados na constituição de um campo político que inclui a dimensão religiosa. Neste sentido, produzimos uma reflexão acerca dos distintos e múltiplos modos de fazer e pensar a política, tomando como objeto a invenção de uma tecnologia de governo, deveras introjetada na vida social e nas práticas profissionais, que são as reuniões, e suas derivações, aqui associadas a eventos públicos. Ao tratá-las como mecanismos de governo foi possível analisar como os discursos acerca da cidadania são apresentados por seus representantes oficiais (policiais, políticos, professores, funcionários públicos, etc.) e apreendidos pelos religiosos de matriz afro-brasileira em dois contextos etnográficos distintos, que podem ser pensados como equivalentes na medida em que engendram práticas e gramáticas próprias.

 

 

Palavras-Chave conflitos; mobilização política; espaço público; religiões afro-brasileiras

 

Nosso objetivo neste artigo é problematizar, a partir de distintas experiências etnográficas, como se dá o processo de construção de discursos relacionados à reivindicação de direitos, envolvendo grupos cuja socialização política é distinta daquelas observadas entre grupos considerados mais “engajados” dos movimentos negros, mas cujas ações também produzem resultados na constituição de um campo político que inclui a dimensão religiosa. O propósito é produzir uma reflexão acerca dos distintos e múltiplos modos de fazer e pensar a política, tomando como objeto a invenção de uma tecnologia de governo, deveras introjetada na vida social e nas práticas profissionais, que são as reuniões, e suas derivações, aqui associadas a eventos públicos. Ao tratá-las como mecanismos de governo é possível analisar como os discursos acerca da cidadania são apresentados por seus representantes oficiais (policiais, políticos, professores, funcionários públicos, etc.) e apreendidos pelos religiosos de matriz afro-brasileira em dois contextos distintos, que podem ser pensados como equivalentes.

Em 2007 Daniel Cefaї publicou a obra Pourquoi se mobilise-t-on?. Les théories de l'action collective, na qual apresentava uma proposta de análise das mobilizações coletivas destacando alguns eixos analíticos: o desenvolvimento de uma sociologia dos “regimes de ação”, a retomada da noção de “público”, a concepção das redes e das organizações como arenas de experiência e de ação, e uma abordagem sobre a cultura voltada às experiências individuais e coletivas. O autor (Cefaï 2007) narrou como a sociologia “pragmática” afetou as Ciências Sociais na França, sem que, no entanto, atingisse a sociologia dos movimentos sociais, que se manteve presa a modelos interpretativos que tendiam a reduzir as iniciativas de mobilização coletiva às ações racionais, motivadas por interesses, impossibilitando compreender as complexas teias que envolvem as pessoas e os coletivos que desse processo se originam, bem como as situações que são reveladas. Sua proposta pode ser resumida, então, em compreender as mobilizações coletivas a partir de sua constituição, por diversas maneiras de envolvimento, o que pode resultar em processos coercitivos nem sempre transparentes aos atores, ocultando as dimensões morais e afetivas que engendram esses processos.

Embora este artigo não se filie à sociologia pragmática, é preciso ressaltar que essa abordagem nos inspirou, na medida em que tornou possível a descrição de algumas experiências coletivas; no caso, processos de mobilizações, conflitos e configurações institucionais relacionados à promoção de cidadania e desenvolvimento de políticas públicas envolvendo religiosos de matriz afro-brasileira na cidade do Rio de Janeiro. Tomaremos como foco as interações com diferentes atores do poder público na construção de uma série de dispositivos de disciplinamento dos comportamentos e dos discursos1 (Foucault 1996). Tomamos como ponto de partida a análise de reuniões regulares realizadas por dois grupos, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e o grupo Elos da Diversidade, que têm em comum a apresentação de demandas por respeito ao direito à liberdade religiosa e ao uso do espaço público2 para a realização de suas práticas religiosas. Tal escolha permite apresentar processos de aprendizado de uma gramática cívica que embasa a busca por direitos, cuja principal distinção está na inclusão da dimensão religiosa como uma variável importante em contraposição às abordagens marxistas que durante anos influenciaram os movimentos negros, que deslegitimava o tema como parte do debate público, assim como também deslegitimava as questões de gênero.

Privilegiamos a análise das reuniões por considerar que favorecem uma abordagem situacional que privilegia a explicitação dos conflitos, ao mesmo tempo em que revela os processos de construção de uma esfera pública e das ações dos sujeitos responsáveis pela construção dos discursos (Agier 2011; Van Velsen 1987). Constitui-se, portanto, como um lugar de discussão, no qual os diferentes atores têm a possibilidade de debater ideias com os demais. Construir uma “pauta”, com o objetivo de alcançar um ponto final comum, pressupõe a produção de algum consenso e a existência de simetria entre os participantes. Caso seja bem-sucedida, a reunião, além de gerar um consenso, deve propiciar algum resultado, preferencialmente uma intervenção no espaço e esfera públicos. Espera-se, principalmente, estimular a presença do maior número de pessoas nos atos públicos, como um mecanismo de pressão para as demandas requeridas. Como observou Comerford (1999), no âmbito de organizações de trabalhadores rurais, as reuniões se configuram não apenas como um espaço de tomada de decisão, mas também de construção de sociabilidades e diferentes formas de participação dos seus membros.

Há condições necessárias para se construir uma agenda comum, das quais destacamos os fatores internos, como, por exemplo, a participação de representantes considerados "legítimos", e externos, tal como a capacidade de dar maior ou menor visibilidade aos problemas e deliberações. É importante esclarecer que essa simetria entre os participantes se constrói de forma retórica, a partir do prestígio pessoal (Comerford 1999) dos que detêm o controle sobre as decisões e dos que se encontram numa situação inferiorizada naquele dado contexto. Como isso se dá na prática é o que pretendemos apresentar adiante.

Os dados que orientaram nossas interpretações são resultados de etnografias de dezenas de reuniões das quais participamos junto a estes dois grupos distintos3 ao longo dos anos de 2008 a 2014. A observação das reuniões possibilitou refletir quais e como as estratégias políticas são mobilizadas pelos integrantes para promoverem suas agendas políticas, tendo como argumentos principais a publicização do sofrimento das “vítimas de intolerância religiosa” no caso da CCIR, e a vinculação das “deidades”4 afro-brasileiras aos elementos da natureza, pelo Elos da Diversidade, como uma forma de legitimar o uso religioso dos espaços naturais para as práticas rituais. A articulação entre os saberes político e religioso, nos dois casos, permite-nos problematizar que a separação entre esses campos é tênue, permeando todos os processos de formulação de políticas públicas.

Apesar de terem dinâmicas e objetivos próprios, as reuniões analisadas podem ser compreendidas como espaços de constituição de saberes por meio de dispositivos de regulação dos comportamentos e, especialmente, dos discursos dos participantes. Nossa abordagem, portanto, pretende demonstrar como a formulação de uma agenda político-religiosa pode ser tratada como equivalente ao processo de “construção da cidadania”, cujo foco está na “conscientização” de direitos partilhados entre os membros dos dois grupos analisados, descortinando um modo próprio dos religiosos de matriz afro-brasileira de participar da vida política na cidade do Rio de Janeiro. Tal perspectiva permite pensar a diferenciação e complexidade das agendas que se unem no compartilhamento da “crença” no Estado como uma instância capaz de administrar a diferença e garantir o status de sujeitos políticos aos religiosos de matriz afro-brasileira que, historicamente5, foram desqualificados pelos agentes públicos.

As reuniões dos dois grupos tornaram-se loci prioritários para a análise, uma vez que nelas eram explicitados os conflitos envolvendo os diferentes segmentos que as compunham e as estratégias desenvolvidas para assegurar o diálogo com os representantes do Estado - estratégia consagrada para garantir a legitimidade às pautas traçadas. Consequentemente, as reuniões correspondiam a momentos de encontro, durante os quais todos podem falar, ouvir e ser vistos, a despeito de rivalidades e disputas presentes no campo religioso6. Nesse sentido, voltamos o nosso olhar para compreender as reuniões como um lócus no qual os participantes eram socializados em uma linguagem política específica - a das demandas por direitos7, através de um sistema de aprendizagem, segundo o qual as falas e os gestos devem ser moldados, a partir de intervenções diretas e indiretas dos demais participantes, na busca de um equilíbrio entre histórias pessoais e discursos políticos legitimados.

Dentre os temas abordados julgamos relevante destacar algumas pautas importantes que compõem o quadro sociopolítico que tem contado com a participação de diversas lideranças religiosas de matriz afro-brasileira: o debate sobre ações afirmativas nas universidades e concursos públicos; o reconhecimento de identidades quilombolas; a luta pela implantação da Lei 10.639/2003; a construção do Estatuto da Igualdade Racial; movimentos de denúncia contra o genocídio da juventude negra; reparação histórica e humanitária para os negros; crítica ao pensamento eurocêntrico; além da intolerância religiosa.

A delimitação desta agenda permite identificar quais são os temas que esses sujeitos utilizam para delimitar o campo do que pode ser considerado como o “político” em contraste ao que não é, sendo deslocado para o campo do “religioso”. Considerado um terreno pantanoso, tudo o que se referia aos ritos era objeto de grande controvérsia, na medida em que poderia representar a prevalência das concepções de um dado grupo em detrimento de outros. A possibilidade de consenso somente parecia possível no que se referia, portanto, quando o “político” pudesse ser “entendido como potência de instituição de capacidades e de direitos (do lado do Estado) e como potência de agir em acordo (do lado do público)” (Cefaї, 2009: 17).

Mas o afastamento do “religioso” não era absoluto nas reuniões. A escolha das datas e locais era, na maioria das vezes, justificada por meio de consultas aos oráculos (búzios, opelé, cartas, etc.). Havia também os pedidos feitos aos Orixás e Entidades, os quais se não fossem atendidos, colocariam em risco o sucesso das atividades. Buscava-se, assim, assegurar o ”axé”, categoria nativa que informa “a energia que anima a vida, que também é o princípio que estrutura as relações entre homens e deuses”. Era este o sentido de cumprir com as “obrigações”. Tratava-se de administrar o plano dos sentimentos (não irritar as divindades), o que resultava em distintas experiências e vivências religiosas. Todas seriam bem-vindas, desde que não se impusesse um modelo único. Era o encantamento da política pública (Boniolo, 2014), ou seja, uma articulação de saberes técnico-científicos dos representantes do Estado à magia, associada à participação dos não humanos, das ações dos religiosos. Essas ações imprimiram marcas na cidade, seja na criação de um calendário próprio de eventos, seja na presença dos ebós8 na paisagem da Floresta da Tijuca. Cada qual a seu modo revelou articulações entre os domínios secular e religioso constitutivos de espaços e esferas públicas de embate e aproximação do “político” e do “religioso”.

Na luta com Xangô, Iansã e Obá: a união improvável em torno de uma causa - o combate à intolerância religiosa

Todas as quartas-feiras, por volta das 16 horas, pessoas de diferentes credos chegavam à Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB), no bairro do Estácio, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Por ser próximo à estação de metrô, o centro espírita tem uma localização valorizada, pois assegura que os religiosos se desloquem com mais facilidade. As lideranças iam chegando aos poucos, mas nem sempre era fácil identificar a que grupo pertenciam. No portão havia apenas um elemento que anunciava o centro espírita: um pequeno cartaz com o nome do templo e os dias das consultas espirituais. Para entrar era preciso tocar a campainha e se identificar pelo interfone.

As reuniões ocorriam no terraço, que fica no terceiro e último andar do pequeno prédio. As cadeiras de plástico ficavam dispostas de frente para a mesa principal, organizadas em cinco fileiras com cerca de seis assentos. A disposição dos móveis para a reunião remetia a uma sala de aula, mas o que ocorreria ali era um evento de outra ordem. Tratava-se da reunião da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), cuja convocação ocorria via correio eletrônico pelo secretário da CEUB que acumulava a função voluntariamente na CCIR.

Em geral, a reunião funcionava como um espaço de compartilhamento de comunicados, comentários e de construção coletiva de documentos a serem divulgados pela CCIR, bem como a divulgação de “casos de intolerância religiosa”9 em diferentes estados do Brasil e na cidade do Rio de Janeiro. Sempre se notava a presença de uma equipe de apoio, composta pelo secretário e outros integrantes que atuavam como colaboradores.

A ambientação favorecia que o espaço da fala ficasse sob controle dos componentes da mesa. A dinâmica se assemelhava a de uma assembleia, na qual se discutiam e/ou resolviam certas questões, do mesmo modo que se traçavam estratégias políticas de intervenção sobre os casos de “intolerância” recebidos. Os participantes podiam variar durante os eventos, mas havia um grupo que estava sempre presente e assegurava o funcionamento da Comissão que, apesar do nome, não possuía nenhuma regulamentação formalizada, fato que era valorizado positivamente pelo “interlocutor”. No seu entendimento, essa estrutura representava uma postura receptiva a todos os grupos religiosos.

A reunião era conduzida pelo interlocutor, que era responsável pela representação política do grupo perante a sociedade. Era ele quem iniciava e encerrava as atividades, controlava o tempo das falas, fazia os contatos com os políticos e com a imprensa. Nas relações cotidianas, notamos que havia um esforço de construir uma imagem de que ele teria uma função apaziguadora entre os diversos grupos que compunham a Comissão. Ele se apresentava como um articulador que tinha como principal instrumento o uso da palavra. Uma de suas principais preocupações era a prudência dos participantes da Comissão diante de qualquer situação do dia a dia. Seu tom de voz era quase sempre sereno e incentivava a todos que se acalmassem antes de qualquer posicionamento diante de eventos polêmicos. Seu papel era, em tese, de porta-voz e não de coordenação política. No entanto, observamos que os papéis se misturavam constantemente e revelavam conflitos junto aos demais integrantes.

A necessidade de parecer imparcial não era, em nossa percepção, uma estratégia, mas sim um recurso político para ocultar as assimetrias entre os componentes da Comissão. Este fato era importante porque revelava como se dava o convívio (ou conflito) entre diferentes hierarquias religiosas, uma vez que o ‘interlocutor’ da CCIR era entendido como representante público das religiões afro-brasileiras apesar de ser um sacerdote “mais novo”. Vários componentes da CCIR possuíam mais tempo de iniciação nos cultos afro-brasileiros e não aceitavam a ideia de serem “chefiados” por alguém mais novo no “santo”. A hierarquia dos sujeitos era revelada em algumas situações, a partir de relações invisíveis aos pesquisadores, já que na maior parte do tempo não era possível se identificar naquele espaço, pela ausência de signos litúrgicos, os cargos hierárquicos dos participantes. A sociabilidade era marcada por uma relação entre sujeitos mediada pela relação com o sagrado. No entanto, invertia-se o sentido popular do termo religião (religare) que, no plano do discurso era acionado para legitimar o valor da ligação do humano com o divino, para ser transportado a outro sentido, o da demarcação de distinções entre “homens e deuses” (Agamben 2007: 66) ou entre os próprios integrantes do grupo.

As reuniões seguiam razoavelmente a mesma dinâmica e duração, sendo comum o ingresso de participantes atrasados. Participavam da reunião os integrantes da CCIR, convidados ou religiosos que apenas apareciam para relatar situações de “intolerância” com o intuito de buscar orientação dos membros da CCIR. No que se refere à disposição dos participantes pelo espaço, observamos que não era pré-definida, eles chegavam e sentavam-se aleatoriamente. O mesmo não se observava em relação ao “interlocutor”, à dirigente da CEUB, ao secretário e aos representantes de organizações públicas (delegado, promotor, etc.). Estes ficavam equidistantes, distribuídos diante da plateia. Dentre os representantes de organizações públicas, a presença mais constante era a da representação da Polícia Civil, o que é compreensível porque havia a necessidade de assegurar o registro dos casos de intolerância nas delegacias. Esta era uma das metas prioritárias do grupo.

Quando foi criada, em 2008, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa cobrava das autoridades que os direitos de “liberdade religiosa” fossem assegurados sob a forma de planos (estadual e nacional) e cartas-compromisso com candidatos aos cargos eletivos. Num primeiro momento, a “intolerância religiosa” era apresentada por alguns membros como uma forma de racismo. Essa era a posição defendida, principalmente, pelos integrantes dos movimentos negros que dela participavam. A defesa da articulação de parcerias com outras religiões e instituições públicas, para garantir que os pleitos da CCIR fossem atendidos, acabou se tornando uma estratégia política do grupo, que progressivamente foi deixando de ser majoritariamente da umbanda e do candomblé, para assumir uma configuração diferenciada. Essa transformação não se deu tranquilamente. Ao contrário, foi fruto de vários debates públicos acalorados, que resultaram no afastamento de muitos membros, principalmente aqueles ligados aos movimentos negros, que deixaram de participar da Comissão. Por sua vez, esta passou a contar com outros grupos (judeus, muçulmanos, católicos, anglicanos, batistas, entre outros). Também eram presença constante as ONGs, como o Projeto Legal10 e o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP)11, os ciganos e as instituições públicas, geralmente ligadas à defesa de direitos humanos. Essa diversidade de representações era classificada de duas formas: os “membros”, que correspondiam a todos que frequentavam as reuniões e os eventos regularmente, e os “parceiros”, que eram os que apoiavam as atividades, mesmo sem estarem presentes. Acompanhamos semanalmente as reuniões no período de 2008 a 201112, a fim de compreendermos como a Comissão selecionava e assistia os “casos de intolerância religiosa” que chegavam ao conhecimento dos seus membros e os encaminhava aos representantes do poder público, em especial, a Polícia Civil e o Ministério Público. Estes integravam o grupo como convidados da CCIR, com o propósito de que as “vítimas” recebessem um “tratamento adequado” por parte dessas instituições (Boniolo 2011; Miranda 2010, 2012; Pinto 2011; Riscado 2014).

Na dinâmica das reuniões, após a discussão de todos os itens da pauta, o “interlocutor” convidava, quando havia alguma “vítima” presente, para que esta ficasse de pé diante dos presentes e contasse em pormenores o que havia ocorrido. Era considerada vítima pelos membros da CCIR toda pessoa que tivesse sofrido algum “ato de intolerância religiosa”, tais como xingamentos, ameaças e agressões motivados por questões religiosas, ainda que a religião não fosse o motivo do desentendimento entre os envolvidos.

As lágrimas e a emoção na descrição das violências vividas e os comentários de indignação dos demais membros marcavam essa etapa da reunião. No entanto, nem sempre era consensual que a história narrada se tratava mesmo de um “ato de intolerância religiosa” perante os integrantes da CCIR. Diversas perguntas eram direcionadas à vítima para esclarecer as dúvidas que a história suscitara, desde a relação com o suposto agressor até o tratamento recebido nas instituições públicas. Era constante a preocupação com relação ao registro do fato na polícia, seguido pela preocupação de que tivesse havido a “correta” tipificação do registro de ocorrência, isto é, se o mesmo fora tipificado segundo a Lei Caó13.

Em meados de 2010, Mônica14, funcionária de um banco privado na cidade do Rio de Janeiro, contou em detalhes a todos os membros da CCIR o que ocorrera no ambiente de trabalho. No decorrer da história, chorava relembrando os momentos em que fora hostilizada por uma colega de trabalho, que a chamava de macumbeira, “aquela que jogava pozinho na mesa dos outros”. Ao final, disse que registrou a ocorrência na delegacia. No entanto, afirmou que o documento fora tipificado como “ameaça”, e não como “intolerância religiosa”. Assim que terminou de falar, o interlocutor da Comissão perguntou se alguém possuía alguma pergunta. Em seguida, destacou que havia uma disputa pessoal nesse caso, no qual a pessoa a estigmatizava, chamando-a de macumbeira. Aconselhou que o sindicato dos bancários procurasse o Ministério Público do Trabalho (MPT) e que chamassem o banco para uma conversa. Achou, também, prudente que a CCIR marcasse uma reunião com a direção do banco para ouvir “a outra parte”, antes de tomar qualquer atitude.

Semanas depois, foi enviado um e-mail comunicando que os membros da CCIR encontrar-se-iam com o procurador do MPT com o objetivo de oficializar a primeira denúncia de “intolerância religiosa” no ambiente de trabalho. A mensagem informava ainda que representantes do banco haviam sido convidados a comparecer à reunião semanal da CCIR. Na breve descrição que se seguia aos compromissos da CCIR, constava o informe de que Mônica acusava o banco e uma colega da mesma agência de discriminação religiosa. Na mensagem, Monica aparece como “vítima” e afirmava que sofrera uma ameaça e uma agressão verbal por parte de uma colega evangélica.

Assim que Mônica chegou à Comissão, o interlocutor achou prudente conversar com os representantes do banco antes de formalizar uma acusação. Ninguém duvidava da história contada por Mônica, mas precisavam decidir sobre como agir. Isso incluía discutir com o delegado da Polícia Civil as possibilidades da retipificação do registro de ocorrência e recorrer aos conhecidos que pudessem ajudar no caso. No decorrer das semanas, a história deixou de ser apenas entre Mônica e a colega de trabalho e passou a envolver também o banco. Entretanto, precisavam agir com precaução - atitude requerida pelo interlocutor diante de qualquer circunstância. Mônica aos poucos foi se tornando vítima de um ato de discriminação religiosa praticado por uma colega de trabalho, cuja religião servia para dar visibilidade à pauta dos integrantes da CCIR.

O caso de Mônica ilustra a importância do espaço da reunião na produção de discursividade (Foucault 1996). O “interlocutor”, uma das lideranças do grupo, era considerado uma pessoa qualificada para dialogar com outros atores dado o seu passado em movimentos sociais e política partidária. Além disso, ele era capaz de acalmar os integrantes da CCIR nos momentos de exaltação e incentivar que estivessem presentes em todas as convocações feitas. Cabia ao “interlocutor” estar presente em todos estes momentos, já que a maioria dos integrantes da Comissão não se julgava com as competências necessárias para conversar com os representantes de outras instituições, públicas ou privadas, porque não dominavam os códigos nem as categorias destes ambientes. Eram, portanto, “excluídos” do debate. Não bastava “exigir”, mas saber como fazê-lo: como falar, quando falar e com quem falar foram capacidades adquiridas pelo interlocutor ao longo de sua trajetória como militante no movimento negro e, agora, na “luta contra a intolerância religiosa”.

Além disso, uma das estratégias da CCIR para mobilizar mais pessoas “contra a intolerância religiosa” era fazer com que “as pessoas acreditassem na existência da intolerância”, como explicava o interlocutor. Por isso, uma das atividades desenvolvidas pela CCIR era estimular o registro policial como preconceito ou discriminação religiosa. Caso o registro não fosse feito pelos policiais, os integrantes da CCIR se articulavam para retornar à delegacia com a pessoa a quem foi dirigida a agressão para pressionar pelo registro alternativo. Nesses casos era comum a divulgação do ato nas mídias e redes sociais.

Nessas circunstâncias, o interlocutor pedia a todos que trajassem as vestimentas religiosas para dar visibilidade às demandas dos religiosos. Os membros da Comissão compareciam antes do horário marcado e esperavam do lado de fora junto com a vítima e seus familiares, que tanto poderiam ser a “família de santo” como seus parentes biológicos. Quando o interlocutor chegava, ele e a vítima entravam para conversar com o delegado. A imprensa era chamada, pelos próprios integrantes da CCIR, que enfatizavam a importância dos meios de comunicação na divulgação dos eventos, a fim de funcionar como mais um instrumento para cobrar das autoridades respostas às agressões.

Por vezes, quando o registro já havia sido realizado, o delegado que acompanhava a Comissão entrava em contato com o encarregado do caso para conversar sobre a forma como o documento fora feito. Segundo ele, muitos policiais desconheciam a Lei Caó pela mesma não ter sido incluída no sistema15 da Delegacia Legal16, comprometendo o enquadramento dos delitos. Após as manifestações nas delegacias, era comum retornar-se às reuniões para avaliar o andamento do caso ou seguir com a construção de pautas políticas.

Ao longo dos anos, a dinâmica da reunião passou por muitas alterações, mas foi possível identificar alguns momentos constantes:

Fase preparatória que antecede a atividade: onde há uma a interação livre entre os participantes;

Apresentação do tema da reunião: é precedido por uma discussão sobre a conjuntura apresentada pelo “interlocutor” (sem controle de tempo), que depois libera a palavra aos demais (com algum tipo de controle de tempo);

Deliberação e encaminhamentos com divisão de tarefas;

Encerramento da sessão, geralmente sucedida pela composição de pequenos grupos, que seguiam discutindo e deliberando acerca da pauta, bem como a manifestação de impressões acerca da reunião.

Todas as ações eram debatidas e gestadas (Souza Lima 2002) nas reuniões do grupo com o propósito de tornar as vítimas “conscientes” de que as agressões vividas eram fatos criminosos e como tal deveriam ser tratados pelos representantes do Estado. Também era uma estratégia convencer aos demais que os “atos de intolerância religiosa” poderiam acontecer com qualquer um, por isso, o sofrimento das vítimas era mobilizado como um discurso valorizado17 para aproximá-las dos demais religiosos, despertando-lhes um sentimento de solidariedade a fim de sensibilizar os variados setores da sociedade. No entanto, não se podia exagerar na exposição dos religiosos, sendo necessário incorporar, progressivamente, um discurso político que valorizasse “o direito de cidadão” para “exigir” dos representantes do poder público que as agressões físicas e simbólicas fossem criminalizadas, de modo a confirmar oficialmente a existência da “intolerância religiosa” no Brasil. Era comum citar a “ invisibilidade do racismo na sociedade brasileira” para reforçar a necessidade de “provar que a intolerância” era o tema central das discussões do grupo.

Segundo a assessora de comunicação da CCIR, nos primeiros anos de sua existência, a estratégia era veicular o “sofrimento das vítimas” a partir da criminalização da “intolerância religiosa” e da divulgação da Lei Caó:

Trabalhamos com o sofrimento de centenas de pessoas porque tínhamos dois pontos-chaves. Primeiro, os advogados não tinham condições de atuar nesses casos porque não tinham conhecimento da legislação e nem sabiam quais eram os mecanismos em que o crime poderia acontecer. Segundo, ninguém sabia o que era intolerância religiosa. Bater em macumbeiro é a coisa mais natural do mundo. Chamar alguém de macumbeiro na rua é muito normal. Proibir uma criança de entrar de ojá numa sala de aula é normal. Chutar macumba na rua é normal porque nunca fomos cidadãos (Assessora de Comissão da CCIR - notas de trabalho de campo).

A construção de uma narrativa que destacasse a “intolerância religiosa” era a chave para articular os religiosos de matriz afro-brasileira, bem como os demais participantes de outros credos, já que todos poderiam ser alvo. A universalização do fenômeno era a estratégia possível para lidar com as diferenças inexpugnáveis.

Essas ações, no entanto, só eram possíveis na medida em que o domínio dos discursos políticos era apreendido pelos integrantes da Comissão. Nas situações de interação entre os integrantes da CCIR e destes com os representantes do poder público, a produção de um discurso aglutinador não pode ser compreendida apenas como um mecanismo de comunicação que pudesse expressar os “atos de intolerância religiosa”, mas também como o estabelecimento de uma linguagem em que todos se reconhecessem e que fosse capaz de atualizar as relações de força dentro do campo político-religioso carioca (Bourdieu 2008), ainda que os membros da CCIR, da Umbanda e do Candomblé, estivessem cientes do lugar destinados a eles dentro desse campo - ser um grupo minoritário, estigmatizado e marcado pela discriminação racial.

O que se observou foi a construção de uma gramática que valorizava o consenso entre as religiões, mesmo quando na prática ele se mostrava inviável. A narrativa construída a partir da ideia da “intolerância religiosa” como justificação (Boltanski e Thevenot 1991), ou seja, como fator de união de diferentes grupos religiosos que participam da CCIR, funcionava como estratégia de aglutinação, mas ela era subsumida na estratégia de privilegiar a articulação de processos decisórios que excluíam alguns atores sociais.

Essas estratégias de mobilização eram estruturais na organização de dois grandes eventos durante as reuniões da CCIR: a Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa e o Cantando a gente se entende.

A Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa tem sido realizada anualmente no mês de setembro, desde 2008, na orla de Copacabana, escolhida por ser um lugar de importância histórica nos ritos de fim de ano, de oferendas à Iemanjá, e por ter visibilidade internacional. Todo ano a CCIR elege um tema que será apresentado em faixas e cartazes carregados por integrantes da Comissão durante o caminho percorrido.

O cortejo é dividido por cartazes (Fig. 3), que tanto apresentam os grupos que participam como servem para cobrar dos representantes do poder público a correta tipificação dos registros, segundo a Lei Caó ou a defesa da implantação da Lei 10.639/2003. Ao longo do percurso, os oradores gritam palavras de ordem (“eu tenho fé”; “quem é de axé diz que é”; “quem é de axé vota em quem é de axé”) e convidam participantes para discursar ou para cantar. Os oradores e convidados especiais sobem nos carros de som, alugados pela organização do evento (Fig. 2).


Figura 3 Concentração da Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa, Copacabana - RJ, 2010

O outro evento organizado pela Comissão é o Cantando a gente se entende, uma atividade de “confraternização cultural e inter-religiosa” que ocorre desde 2013 na Cinelândia (centro da cidade do Rio) e no Parque Madureira (zona norte da cidade) para “cantar em defesa da paz”. O evento, que ocorre no dia 21 de janeiro - Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa18 - é promovido pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), com o patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro e apoio da Rede Globo, que costuma liberar a participação de artistas - que não cobram honorários. Entre as apresentações dos artistas, os mestres de cerimônia abrem espaço na programação para a fala de representantes dos segmentos que compõem a CCIR. Estes fazem rápidas intervenções contra a “intolerância religiosa”.


Figura 4 Público assistindo o Cantando a gente se entende - 2014 


Figura 5 Figura 5 Palco - Apresentação de Arlindo Cruz no Cantando a gente se entende - 2014

A principal diferença entre os eventos está no público. A Caminhada é uma atividade pública que mobiliza os próprios integrantes das religiões de matriz afro-brasileira, que recebem a adesão de outros religiosos, manifestantes de diferentes movimentos sociais e integrantes de partidos políticos. Já o Cantando é voltado à sociedade civil (Fig. 4), uma vez que tem como atração principal a apresentação de artistas (Fig. 5), cujo próprio pertencimento religioso é destacado para ressaltar a construção da defesa da liberdade religiosa. A participação do artista Arlindo Cruz, que foi convidado por ser do Candomblé e não ocultar essa identidade, merece ser destacada, já que ele próprio foi alvo de mensagens na internet que o acusavam de estar com problemas de saúde por causa de sua religião19.

A realização desses eventos, e tantos outros, é precedida por intensa organização das atividades, pela distribuição das tarefas entre os religiosos, configurando um exercício do poder coletivo que expressa uma mobilização em prol dos direitos civis que não se resume a protestos nas redes sociais. Porém, nem tudo é simples. Em todos os anos de organização dos eventos um mesmo obstáculo tem se apresentado: a resistência do Corpo de Bombeiros em emitir a licença final para a realização da Caminhada. A instituição, juntamente com a Prefeitura da cidade, exige a presença de uma estrutura médica (profissionais de saúde, ambulâncias, macas, tendas, etc.) (Fig. 6), cujo orçamento pode chegar a cerca de vinte mil reais ou mais. Em todas as ocasiões, a solução para o problema está no acionamento de redes de contatos políticos e institucionais, o que inclui a conquista de notas em grandes jornais para dar visibilidade ao conflito.


Ana Paula Miranda
Figura 6 Ambulância contratada para dar suporte durante a Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa, Copacabana - RJ, 2010

A opção de divulgar alguns problemas e ocultar outros, inerentes ao processo de construção de eventos, revela uma forma de articulação política que coloca em jogo distintas expressões de criatividade, que subvertem os papéis pré-estabelecidos. Assim, torna-se possível aceitar que alguém que, na hierarquia das religiões seria considerado “um mais novo”, possa estar à frente “dos mais velhos”, do mesmo modo que os religiosos assumem o papel de mestre de cerimônias nos eventos públicos, em palcos em que os políticos (deputados, vereadores, etc.) são geralmente interditados, pois o destaque devem ser as lideranças religiosas, as vítimas e os artistas.

Ao longo dos anos, as lideranças religiosas que compõem a CCIR mudaram. Os que permanecem revelam que a constituição desse movimento social se caracteriza por ser policentrada. A convivência de muitas tradições religiosas, com suas respectivas hierarquias, resulta na construção de uma organização que não pode ser totalmente centralizada, pois representaria a submissão de um grupo a outro. A possibilidade de se unir em público torna-se possível apenas porque há uma negociação das identidades coletivas em torno de uma política mais centrada nas situações vividas no cotidiano - as discriminações motivadas pela intolerância religiosa e pelo racismo - como o ponto de união entre os sujeitos.

A relação com os representantes de organizações públicas era ambivalente. A interação com esses atores permitiu identificar que a busca por direitos era negociada visando à conquista do reconhecimento de que os religiosos de matriz afro-brasileira não usufruíam dos direitos do mesmo modo que outros religiosos. Embora a ideia de igualdade esteja presente no discurso oficial do Direito brasileiro, os religiosos envolvidos reconheciam que as práticas de poder revelavam formas de discriminação das vítimas, em função de suas identidades religiosas e étnico-raciais. Nesse sentido, a marca que o movimento foi capaz de deixar na cidade, no campo político, com a constituição de um movimento social legitimado, apontou como necessidades e aspirações o direito ao tratamento igualitário, mesmo estando consciente de que os indivíduos provavelmente não alcançassem o que se desejava.

Na luta com Oxossi, Ossaim e Logunedé: a articulação de forças na sacralização da natureza

Semanalmente, às quintas-feiras, os integrantes do Elos da Diversidade20 se reuniam às 10 horas em uma das salas do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O grupo era formado por religiosos de matriz afro-brasileira, professores universitários, funcionários da Superintendência de Educação Ambiental da Secretaria do Estado do Ambiente (SEAM/SEA), representante do Movimento Inter Religioso (MIR) e ex-funcionários do Parque Nacional da Tijuca (PNT)21.

O número dos membros que constituíam o núcleo da equipe variou entre nove e 11, durante o período em que o projeto foi administrado pela SEA. Cabiam a eles, principalmente aos coordenadores, as decisões a serem tomadas, auxiliados por uma equipe de apoio, composta por uma secretária, uma advogada, uma contadora, duas produtoras de eventos, um responsável pela logística dos eventos (comidas e combustíveis para os veículos) e um assessor de comunicação. Além destes, dez religiosos, considerados os “mais tradicionais” da região metropolitana do Rio de Janeiro, compunham o grupo. Embora as respectivas participações ficassem restritas aos eventos promovidos para o público externo ao Elos, a influência destes sacerdotes de Umbanda e Candomblé era a garantia de credibilidade do projeto perante aos demais religiosos.

A sala com cerca de 20 m², na qual acontecia a reunião, tornava-se pequena pela presença de mesas, cadeiras e armários para comportar os materiais do projeto, além dos equipamentos e documentos da própria universidade. O ambiente cercado por ficheiros, papéis, folders e livros era contrastado por cartazes de eventos religiosos e lembranças de festividades afro-brasileiras.

As conversas sobre os mais variados assuntos antecediam as pautas das reuniões que eram enviadas semanalmente pela secretária. Conversas sobre eventos ocorridos durante a semana, comentários sobre políticos, religiosos e integrantes de movimentos sociais, histórias sobre as divindades afro-brasileiras e trajetórias pessoais transformavam o espaço num ambiente informal. Tudo isso ocorria enquanto aguardavam a chegada da representante da Secretaria do Estado do Ambiente para iniciar a reunião.

Apesar de não haver lugares pré-definidos, a disposição dos participantes ao redor da mesa explicitava diferentes níveis de vinculação. Os mais próximos ao centro eram os que chegavam mais cedo e os que constituíam o “núcleo” do projeto. Aqueles que se sentavam próximo às pontas, e que geralmente permaneciam a maior parte do tempo em silêncio, eram criticados por um menor engajamento ao projeto. As críticas não eram públicas, surgiam em comentários quando os membros não estavam presentes. Cabia a um dos coordenadores evitar a explicitação dos conflitos e administrá-los. Todos os participantes recebiam um pagamento mensal do projeto, exceto os “mais velhos” que recebiam uma ajuda de custo para o deslocamento nos dias de eventos.

No decorrer do projeto, algumas pessoas foram desligadas do grupo devido a “pouca mobilização”, outras foram incorporadas para “avançar com a pauta”. Os integrantes que foram agregados posteriormente ou aqueles que faziam parte da equipe de apoio ocupavam as cadeiras distribuídas pela sala.

O objetivo das reuniões, acompanhadas durante o período de novembro de 2012 a março de 2014, era planejar e definir as atividades que deveriam ser executadas a partir de dois propósitos: consolidar as etapas previstas no projeto de criação do Espaço Sagrado da Curva do S22 e realizar, ou apoiar, eventos que divulgassem o projeto e a relação das deidades afro-brasileiras à natureza e à sua preservação (Boniolo 2014), conforme um calendário aprovado pelo grupo. Além disso, discutia-se como poderiam oferecer apoio em cerimônias realizadas pelos integrantes, tais como as comemorações de datas religiosas, e aos demais parceiros23, bem como na celebração de certas datas não religiosas, em especial, os eventos relevantes para os ambientalistas (o Dia Mundial da Água e o Dia da Mata Atlântica). Todos os eventos tinham como finalidade ressaltar a dependência das religiões afro-brasileira com a natureza e a preservação desta como garantia de continuidade das práticas religiosas.

O momento inicial da reunião (apresentação dos pontos da pauta) era marcado por uma maior informalidade. As reuniões eram controladas pela superintendente, que também coordenava o Programa Ambiente em Ação, do qual o Elos da Diversidade era integrante. A gerência do Programa Ambiente em Ação incluía ainda uma coordenadora acadêmica, função que era ocupada por uma professora da UERJ. O Elos da Diversidade era coordenado por um professor da UFRJ. Esses três eram responsáveis por gerir o orçamento, executar as metas previstas e orientar as ações dos membros representantes da Umbanda e do Candomblé, bem como gerenciar o restante da equipe. Aos coordenadores do Elos cabiam as tarefas de interlocução principalmente com os representantes do poder público ou com os funcionários do PNT. Os religiosos faziam sugestões sobre as ações e atividades do projeto, mas as decisões eram de responsabilidade exclusiva dos três coordenadores. A relação entre os religiosos e os gestores do programa era complexa. Havia uma preocupação por parte dos coordenadores de valorizar os conhecimentos administrativos e científicos sem desqualificar os conhecimentos religiosos. Ressalta-se que os gestores possuíam vínculos com as religiões de matriz afro-brasileira, o que não evitava que, em diversas situações, os religiosos se sentissem desvalorizados por não terem destaque dentro do grupo e por não serem considerados em função de seu tempo de iniciação, critério fundamental na hierarquia religiosa.

Ao longo dos quase 20 anos24 de existência do projeto, os participantes relataram que sempre se buscou ampliar as parcerias para incluir novos religiosos ao grupo por meio de seminários e oficinas com vistas à legitimação da construção do Espaço Sagrado e das práticas das oferendas em áreas públicas naturais (Fig. 7). Outra estratégia do grupo foi aderir a outros movimentos pela cidade que tivessem a temática da liberdade religiosa como agenda política, tal como o Movimento Inter Religioso e a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. A participação de professores universitários conferia igualmente legitimidade às ações do grupo, seja apontando as desigualdades na garantia dos direitos e/ou assegurando a “seriedade” das demandas perante outros atores, principalmente aos religiosos de matriz afro-brasileira e representantes do poder público, segundo os próprios religiosos que integravam o Elos.

                                                                                                                                                                                    
        Por Roberta Boniolo, 2012                                                                                                                                       Figura 8 Restos de oferendas depositadas na cachoeira no interior da Curva do S                                                      Por Roberta Boniolo, 2012

       Figura 7 Oferenda realizada no Espaço Sagrado da Curva do S                                                                                                                                                                                                                                                              Figura 9 Restos de oferendas realizadas no curso d'água que corta a Curva do S 

 

O foco principal do grupo era como lidar com o conflito ocasionado pela presença de restos de oferendas no Parque Nacional da Tijuca (Figs. 8 e 9). Este foi o conflito motivador, a partir do qual diversas instituições e pessoas se mobilizaram para reivindicar o direito de uso da natureza para as práticas religiosas, resultando na criação do Elos da Diversidade, que visou ao projeto de construção de um espaço nas adjacências do PNT, a fim de que os religiosos pudessem deixar as oferendas na natureza sem colocar em risco as demais áreas, visto que, por lei, dentro do parque, os religiosos devem retirar as oferendas após a realização dos rituais25.


Figura 10 Foto de satélite do Espaço Sagrado da Curva do S, 2015

Essa foi a solução que religiosos, professores universitários, pesquisadores, alguns funcionários do PNT e representantes de ONGs encontraram para administrar o conflito decorrente das práticas religiosas no interior do parque, posto que a maioria dos funcionários do parque as consideravam danosas à flora, à fauna e à paisagem. O projeto Espaço Sagrado da Curva do S (Fig. 10) tinha como principal meta a criação de uma série de medidas de infraestrutura, tais como rampas para idosos e deficientes físicos, banheiros, telefone público, sistema de coleta das oferendas, vestiário, sala para eventos e composteiras.

Também eram realizadas oficinas para discutir com os religiosos a possibilidade de “reformulação” das oferendas a partir do uso de elementos biodegradáveis, o que era objeto de grande contestação por religiosos que não faziam parte do grupo, que as consideravam uma interferência do Estado nas religiões, já que as escolhas dos utensílios utilizados seguem também a orientação dos Orixás e Entidades.

Para lidar com aqueles que não aprovavam as sugestões de mudança, os membros do Elos passaram a valorizar as lembranças dos sacerdotes “mais velhos”, de quando eles começaram a praticar a religião, incentivando todos a retornar à prática tal como era no período de suas iniciações ou, ainda, num período mais longínquo, de seus antepassados, em África, quando não se utilizava o plástico, nem o vidro, nem a vela nas oferendas. Esse movimento era visto como um resgate da “autenticidade” do ritual.

Cabe ressaltar que o tema da “autenticidade” é altamente controverso, já que a noção de tradição africana no Brasil, comumente associada à nação nagô (iorubá)26, resulta de uma tensa relação entre o discurso nativo e o discurso científico (Capone 2005), que revela como a constituição de oposições - tradição/pureza X modernização/degeneração - não é facilmente traçável, tendo sido resultado de escolhas dos praticantes e dos pesquisadores que, ao se dedicar aos estudos do Candomblé, acabaram se engajando em algum terreiro e consagrando em suas obras as classificações nativas.

A valorização de um rito de uma África idealizada - sem plástico, vidro ou vela - oculta a complexidade na reflexão acerca das relações entre tradição e poder. Ao estabelecer como se deve construir o ritual, o grupo acabava por produzir uma hierarquização dos terreiros, destacando aqueles que, de alguma forma, estavam vinculados aos grupos mais “tradicionais” e os que seriam os “marmoteiros” ou os “bequeiros”, que são acusados de não seguirem as regras das religiões afro-brasileiras e “modernizarem” excessivamente as práticas religiosas. O confronto entre essas classificações revela uma tensão fundante - a de que o próprio Candomblé é uma adaptação de diferentes cultos provenientes de regiões distintas em África, que apenas se reuniram no Brasil por conta da escravização de populações negras. A permanente tensão resulta, muitas vezes, numa rede de acusações e intrigas em torno da legitimidade e preservação de conhecimentos orais.

Cada casa é uma casa. Não existe no Candomblé uma receita que passa de geração a geração sem se alterar. Mas mesmo assim, se você faz o acaçá de forma diferente, começa a disputa. Tirou foto de orixá? Vai ser chamado de ‘beco’. O tempo de recolhimento é menor? ‘Muita modernidade... Estão estragando a religião!’ ‘Marmota’… (Conversa com ialorixá, notas de campo).

A construção de um grupo para tratar dos ritos, mas, principalmente, dos detritos que restam após sua colocação no espaço público, revela a construção de uma aliança entre religiosos, professores universitários e gestores de políticas públicas que, ao pactuarem alguns discursos, dão visibilidade e acabam legitimando certos terreiros em detrimento de outros, atribuindo-lhes uma relevância e, consequentemente, um poder que os outros não terão. Além disso, a construção coletiva de práticas rituais ecologicamente “corretas” invisibiliza uma lacuna existente entre as práticas rituais cotidianas desses cultos, marcadas pela heterogeneidade deste campo religioso, e a idealização das tradições, que pode ser associada tanto à África quanto à Bahia, para o Candomblé.

O plástico, o vidro ou a vela eram os três elementos considerados pelo Elos da Diversidade como os mais prejudiciais ao ambiente27. Além desses, os funcionários do PNT também consideravam todos os tipos de vasilhames usados nos rituais para servir as comidas aos orixás e entidades como poluentes. Por esse motivo, os integrantes do Elos incentivavam a substituição dessas peças por folhas de bananeiras ou mamona, por exemplo. Tratava-se, nas palavras dos coordenadores, de recomendações, embora a decisão final devesse ser do dirigente da casa, incluindo os objetos usados na constituição das oferendas. Ainda que a questão fosse controversa, ninguém nunca se posicionou publicamente contra as proposições dos membros do Elos, com receio de ser classificado como “poluidor”. Para o Espaço Sagrado, os membros do Elos conseguiram encontrar soluções para o uso desses objetos sem comprometer os recursos naturais e a paisagem. Por outro lado, em outros espaços, era possível ouvir críticas ao projeto por interferir em práticas rituais religiosas estabelecidas segundo as “tradições” locais. Embora essa observação ocorresse “nos bastidores” dos eventos públicos, ela revelava a principal fragilidade do projeto, o qual, ainda que tenha sido bastante eficiente em dar visibilidade ao debate sobre a preservação ambiental, não conseguiu uma maior adesão além dos próprios participantes.

A intervenção no ambiente não se limitava aos ritos. Foi criado um projeto paisagístico, elaborado por arquitetas vinculadas ao Laboratório de Arquitetura, Subjetividade e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Fig. 11). A concepção do projeto era tornar o local, situado às margens do parque nacional, adequado às práticas religiosas, interferindo o mínimo possível no ambiente natural. Os coordenadores do Elos, com a colaboração das arquitetas, pretendiam utilizar plantas vinculadas às deidades afro-brasileiras e pertencentes à Mata Atlântica para fazer a recomposição da vegetação, recuperar os troncos de árvores queimados pelo uso de velas e colocar filtros para reter as oferendas que precisam ser realizadas na cachoeira e no rio, presentes na localidade.

Além de local de realização de rituais religiosos, o grupo pretendia que o Espaço Sagrado também fosse utilizado para a realização de oficinas de “reformulação” das oferendas. Haveria, ainda, um espaço para fazer compostagem com o material que pudesse ser reaproveitado das oferendas. Este tema era bastante controverso, porque dependendo do ritual realizado nada poderia ser aproveitado por estar “carregado” de energias negativas. Questionava-se, portanto, como seria possível saber dentre as oferendas encontradas na localidade quais seriam ou não habilitadas ao reaproveitamento. Previa-se também a escolha de lugares específicos para o uso das velas, preferencialmente longe dos troncos das árvores, bem como a retirada das oferendas por pessoas treinadas por uma equipe vinculada ao projeto após o período ritual estimado para cada uma delas.


Por Roberta Boniolo, 2013
Figura 11 Maquete do Espaço Sagrado da Curva do S

Notava-se uma preocupação com a incorporação de valores e princípios religiosos à gestão do projeto, aliados aos princípios ambientais. Isso ficava evidente nos encontros promovidos com os religiosos chamados de Guardiões do Sagrado e da Natureza, que tinham a função de incluí-los na formulação das regras de uso do Espaço Sagrado da Curva do S. Essas reuniões aconteciam fora da universidade, nas próprias casas de santo e terreiros dos sacerdotes, e seguiam as ritualísticas dessas religiões, com cumprimentos, saudações e cânticos às deidades. Nesses espaços, a conversa era iniciada por um dos membros do Elos e, a partir das histórias contadas pelos “mais velhos”, esperava-se preparar um texto baseado nas recomendações dos guardiões sobre os comportamentos adequados em um espaço sagrado, o que posteriormente seria apresentado aos gestores do Parque Nacional da Tijuca. A posição de destaque nas falas era das “guardiãs sacerdotisas”. Os demais presentes se agrupavam em cadeiras ao redor, a fim de escutá-las narrar as histórias que envolviam os deuses e as suas trajetórias de vida. Havia poucas tentativas por parte da superintendente de retomar a pauta do encontro. Neste sentido, as “sacerdotisas” possuíam o controle do tempo das falas e a condução das conversas, de modo distinto do que ocorria na universidade.

Observávamos que estas reuniões eram uma tentativa, por parte dos coordenadores do Elos da Diversidade, de romper com a desconsideração da fala dos religiosos afro-brasileiros, um dos princípios de exclusão do discurso, segundo Foucault (1996). Nestas circunstâncias, a autoridade dos sacerdotes era respeitada, a fim de que seu conhecimento pudesse ser incorporado ao projeto.

É importante salientar que a s relações entre os membros do Elos da Diversidade também eram perpassadas pela agência das deidades afro-brasileiras. A presença constante das divindades era mencionada no que se refere à aproximação das pessoas e na realização de consultas aos orixás, através dos búzios, para saber a decisão a ser tomada, qual caminho a ser seguido. Tais argumentos religiosos acabavam por revelar uma inversão da organização administrativa estatal, deixando claro que o lugar da autoridade durante as reuniões era redefinido em função do assunto tratado - religioso, administrativo ou acadêmico.

Quando as atividades eram para um público não religioso, e algum dos coordenadores fazia um discurso de caráter mais místico, era notável o incômodo entre os demais participantes. Ainda que muitos religiosos demonstrassem simpatia pela defesa das religiões afro-brasileiras realizada por gestores ou professores, outro grupo de religiosos, claramente mais integrados às dinâmicas do debate público, não concordava com esta postura, preferindo demarcar melhor a separação entre o político e o religioso. Deixavam perceber que a postura esperada dos representantes do poder público deveria ser distinta, mais contida e mais formal. Afinal, aqueles que são qualificados para falar devem possuir um comportamento adequado à circunstância que acompanha o discurso (Foucault 1996).

Nas atividades realizadas para os religiosos, a equipe técnica e os coordenadores tinham o cuidado de dialogar com os religiosos e de seguir uma etiqueta religiosa, abaixando a cabeça para beijar a mão das lideranças, pedindo “bênçãos aos mais velhos” e saudando as divindades para lhes rogar ajuda na condução e na concretização do projeto. Por outro lado, era possível notar que os religiosos demonstravam interesse em aprender termos e conceitos científicos para empregar em discursos, quando fossem solicitados ou quando estivessem diante de alguma autoridade política.

Em todas essas ocasiões ressaltava-se que a ligação com a universidade era importante para que os religiosos fossem ouvidos pelos representantes do Estado. Não hesitavam em afirmar os seus direitos e o dever do poder público de assegurá-los. Tomavam o ambiente propiciado pelo projeto, através das reuniões e eventos, como uma forma de aprenderam os discursos político-acadêmicos consolidados, nos quais podiam reconstituir-se como sujeitos de direitos para “reivindicarem” seu reconhecimento na sociedade.

Certa vez, durante uma das reuniões, uma das integrantes do Elos contou entusiasmada como utilizou “um conceito da academia” diante de várias autoridades políticas. Sem entrar em muitos detalhes das razões pelas quais fora convidada a estar presente na solenidade, disse que sentiu necessidade de ir além dos termos religiosos. Lembrou-se do que ouvia nas reuniões e, diante das autoridades públicas, explicou a relação dos orixás com a natureza a partir do uso de conceitos da Geografia Cultural - o “geossímbolo”28.

As reuniões funcionavam, portanto, como espaços de socialização e compartilhamento de discursos que articulavam as temáticas ambiental e religiosa com as gramáticas políticas e acadêmica em função do contexto. A necessidade de se socializar com os termos utilizados pelos movimentos ambientalistas também era reconhecida pela maioria dos religiosos. Eles entendiam que, diante de um cenário conflituoso e de impedimentos de realização das práticas rituais, a universidade era uma ponte para aprenderem a linguagem de reivindicação de direitos para falar sobre a natureza a partir de uma perspectiva religiosa. Ainda que os interesses fossem diferenciados e que houvesse divergências e disputas entre os participantes, pode-se afirmar que o Elos propiciava a construção de uma narrativa político-acadêmica-religiosa que unia religiosos, professores, representantes do Estado, de movimentos sociais e de ONG. Todos sabiam que os discursos produziam efeitos no âmbito de construção e implementação de políticas públicas e que, por isso, precisavam dominar a gramática das políticas públicas para ter acesso e usar os espaços naturais na reprodução das práticas religiosas.

A presença de agentes públicos nas reuniões revela uma forma de governamentalidade (Foucault 2008), que coloca em xeque o paradigma da racionalidade como “princípio organizador” da política (Bobbio 2000). As narrativas construídas pelos participantes do Elos ressaltavam a constituição de um domínio religioso no interior do espaço público como um elemento positivo da política. Tal perspectiva acabava por destacar a necessidade de criação de uma forma de gestão autônoma e complexa desse espaço público, o que pressupunha uma coesão e legitimidade entre os religiosos, que somente poderia ser construída a partir da sacralização da natureza, tendo em vista que não seria possível um consenso em torno das práticas rituais sem que isso representasse a legitimação de um grupo apenas. Assim, a competição presente no mercado religioso representava uma constante ameaça à frágil pactuação construída, a qual seguia, também, ameaçada pela disputa político-partidária, razão da derrocada do projeto, que foi desativado após a troca de governo, quando entrou um novo secretário de estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dimensão política de qualquer discurso pode, às vezes, ocultar as contradições e os interesses dos sujeitos envolvidos na sua construção, seja no campo da ciência ou no campo das políticas públicas voltadas à cidadania. Explicitá-los é justamente a possibilidade de revelar um processo dinâmico de construção cultural que permite superar a ideia de que os religiosos de matriz afro-brasileira não se organizam politicamente.

Este texto teve a intenção de revelar fragmentos de como a multiplicidade de identidades religiosas pode ser negociada entre os atores sociais para dar espaço à construção de discursos para legitimar, ao mesmo tempo em que os inventa, narrativas políticas fundamentadas em práticas religiosas, relacionando alguns pressupostos a uma matriz negro-africana, que por sua vez estaria vinculada a uma tradição mais ecológica, pela relação direta com a natureza. Assim, a identidade político-religiosa afro-brasileira se apresenta publicamente não só como um patrimônio histórico-cultural, mas como parte de movimentos sociais negros que valorizam o Candomblé como a religião do povo negro. Esse processo coincide com a construção da luta contra a intolerância religiosa como um espaço de controvérsias sobre a "dessincretização" do campo religioso, o branqueamento dos terreiros e as tênues fronteiras da realização dos cultos aos Orixás e Entidades no espaço das cidades (Silva 2008). A associação entre “negritude”, “africanidade” e ancestralidade expressa, portanto, uma tensão política no campo religioso “afro-brasileiro”, que resulta na desqualificação pública de práticas religiosas associadas à Umbanda, ao consumo de produtos industrializados, em especial, aos elementos rituais de matriz judaico-cristã, como, por exemplo, o uso de velas nos rituais religiosos afro-brasileiros. Essa tensão resulta numa complexificação cada vez maior das formas de culto, e não na construção de uma ortodoxia religiosa, como desejam alguns. O discurso de "africanização" dos ritos religiosos tem o objetivo de tornar mais potente a afirmação identitária, ao mesmo tempo em que delimita uma outra frente de batalha nas agendas públicas no que diz respeito à realização de práticas religiosas em outros espaços públicos, como os cemitérios, hospitais, etc.

A complexidade da vida religiosa afro-brasileira, ao ser acionada como uma variável fundamental da identidade política, recoloca a questão da separação entre religião e política para revelar a possibilidade de convivência entre “múltiplos arranjos que permitem a adaptação de um modelo ideal à complexidade da prática ritual” (Capone 2005: 29). Como afirma Vagner Silva (2008) o Candomblé sempre esteve localizado nas cidades, mas essas representações das religiões afro-brasileiras na cidade e da cidade resultam em estratégias variadas, no tempo e no espaço, para dar conta das suas respectivas "tradições" e os processos de urbanização.

Ao trazer a religião para o domínio da política pública, os dois grupos rompem com uma abordagem polarizada da laicidade, ao assumir que, no Brasil, o espaço público sempre foi religioso, mas exclusivamente dominado pela tradição judaico-cristã. Ao invés de fronteiras impenetráveis, o que percebemos é uma compreensão de um modo de fazer política que legitima a religião afro-brasileira como um marcador da identidade negra como forma de resposta às agressões, xingamentos, destruições de terreiros e privação de uso dos parques naturais. A valorização do Candomblé neste processo está associada ao papel que passou a ter na construção da

"identidade política do 'povo negro', conforme defendida por diversos segmentos dos movimentos sociais negros na agenda das políticas de ações afirmativas, participando, assim, da reconfiguração do campo religioso e de seus vínculos com a esfera pública" (Sales Junior 2009: 129).

O que se pode observar nos dois contextos etnográficos foi um continumm de ações coletivas no espaço e na esfera públicos. Se num primeiro momento acompanhamos um movimento de caráter mais denuncista, no caso da CCIR, foi o desenvolvimento de muitos debates (virtuais ou presenciais), passeatas/caminhadas, e atos públicos que possibilitaram a inscrição de marcas na cidade. Aos poucos se notam outras formas de ocupar o espaço público, que não substituíram as anteriores. Começaram a aparecer formas de organização coletiva que transcendem os limites das religiões (Candomblé, Umbanda, etc.), as próprias diferenças das práticas afro-brasileiras e as identidades particulares na busca de construção do espaço público, no qual a participação dos religiosos não seja mais a do “mostrar-se ocultando” (Santos 2005), mas o de se unir em público.

Tanto os membros da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa quanto os integrantes do Elos da Diversidade utilizavam as reuniões para discutir estratégias para tornar seus pleitos públicos. Ambos organizavam eventos a fim de divulgar suas demandas e cobrar das autoridades um retorno a elas. As reuniões eram a ocasião para discutir o que seria realizado, onde, quando e quem seriam as pessoas convidadas. Para os dois grupos, os eventos eram atividades grandes, voltadas para um público externo, com a presença da imprensa e de autoridades públicas. As reuniões representam a construção de um novo tempo - o de “cobrar” e “pedir” soluções e, ainda, divulgar suas demandas buscando envolver o máximo de pessoas na “luta”. Nas reuniões, as pessoas que falam em nome do grupo são definidas previamente. O sucesso da atividade demanda que a pessoa possa transmitir a mensagem utilizando um discurso coerente, acompanhado por gestos que emitam segurança. Além disso, as pessoas devem saber o momento adequado para dar as respostas e o tom das mesmas. Portanto, têm que lidar com as circunstâncias e estar preparadas para situações inesperadas.

De maneiras distintas, a CCIR e o Elos constituíram exemplos de organização política que não só envolveram os religiosos, mas que incorporaram princípios e valores religiosos às suas agendas. A diversidade de participantes e de estratégias políticas pôs em xeque uma concepção de que os afro-religiosos não se organizam politicamente, possibilitando pensar que há distintas formas de mobilização que possibilitam construir agendas de modo a atender diferentes interesses, mantendo um vínculo através da religião, delimitando um modo particular de “fazer política”. As estratégias implementadas pelas redes, construídas por sujeitos individuais e coletivos, desvelam uma reconfiguração de dissidências e disputas históricas entre os religiosos, originadas pela competição no campo. Consequentemente, por conta de novas agendas - a luta contra a intolerância e a incorporação do ambientalismo na sacralização da natureza -, as rupturas são transformadas em equilíbrios situacionais provisórios. Unir-se em público representava uma necessidade, mas essa estratégia não pode ser incorporada de forma perene, pois configuraria formas de submissão a grupos adversários. Assim,

“as configurações de tomadas de posição públicas passam por operações de ‘separação’ dos atores de suas redes de ‘posições’ e pela remodelagem de suas paisagens organizacionais, que se temporalizam correlativamente aos debates que fixam as linhas reivindicativas”. (Cefaї 2009: 21).

Embora os dois grupos fossem compostos predominantemente por religiosos de matriz afro-brasileira, os membros da CCIR esforçavam-se para desvincular a presença e ação das divindades dos discursos. Primeiro, por estas serem desconsideradas pelos representantes do Estado; segundo, porque reivindicavam um Estado laico, em que todos teriam o mesmo acesso e garantia aos bens (Miranda 2014); e terceiro, porque diversas religiões passaram a fazer parte da Comissão.

Já o Elos que, durante o período acompanhado, era composto predominantemente por religiosos de matriz afro-brasileira ressaltava em seus discursos a influência dos “orixás” na condução do projeto e da política pública. Com a mudança de governo, que nomeou um secretário ligado a grupos evangélicos, o projeto foi asfixiado. Muitos religiosos passaram a apontar a necessidade de continuidade do projeto com o propósito de implementação do Espaço Sagrado como garantia de um local para a realização das práticas religiosas, o que não aconteceu.

O uso da emoção, para caracterizar a “situação de intolerância” ou para dar ênfase às demandas por reconhecimento de direitos, é um elemento importante para desqualificar os modos tradicionais de se fazer política, que valorizam a racionalidade e a impessoalidade. É, portanto, através da “expressão obrigatória dos sentimentos” (Mauss 1979) que os princípios religiosos são trazidos para a política, visando reencantá-la.

A presença da religião de forma legítima na política é constitutiva do espaço público, bem como dos modos através dos quais os conflitos se explicitam e são administrados fora dos limites dos terreiros, resultando em outras formas de visibilidade e convivência entre os diferentes atores.

Conclui-se que as formas de mobilização dos religiosos analisados constituem os dispositivos dialógicos que levam à assimilação de um problema, até então tratado como privado, a “intolerância religiosa”, para o domínio político como um problema público (Miranda, Correa e Almeida 2017). Tais estratégias põem em questão o sentido da “política liberal que supõe, ao mesmo tempo, a neutralidade do Estado diante das religiões e a oferta de garantias jurídicas à expressão pública das opiniões e crenças” (Montero 2016: 148).

Outra consequência desse processo está associada às formas pelas quais são registradas no espaço da cidade estas ações político-religiosas. Seja em caminhadas, seja na deposição de oferendas no espaço urbano, a cidade é o lugar privilegiado de intercâmbio material e simbólico, no qual se observa uma distribuição desigual de capital simbólico. As queixas contra a realização de oferendas no Parque Nacional da Tijuca são tratadas de maneira diferenciada das queixas contra as celebrações católicas ou evangélicas também realizadas nas dependências do parque. Assim, embora se apresente como uma cidade cosmopolita, fundada nas ideias de universalidade e progresso, o que se vê cada vez mais é a presença de conflitos étnico-raciais e religiosos que clamam por respostas institucionais.

Unir-se em público é, por consequência, uma estratégia de ação que revela diferentes articulações e arranjos entre grupos (religiosos e agentes públicos) na busca de garantir a permanência da religião de matriz afro-brasileira no espaço público. Trata-se de um processo dinâmico e em curso, que não se esgota nesta análise, mas que nos permite afirmar que essas mobilizações possibilitam construir simetrias provisórias por meio de ações interativas.

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NOTAS

1Entendemos os dispositivos de disciplinamentos como formas de controle, seleção e organização da produção dos discursos e corpos. Revelam formas de poder, que a sociedade se coloca e também critica. A dimensão técnica dos dispositivos permite compreender como o corpo é manipulado, para se tornar útil e dócil, ao mesmo tempo que afeta a vida coletiva de uma população (Foucault 1999; 2008).

2O espaço público é apresentado por Habermas (1984) como um local no qual as pessoas compartilham, interagem e apresentam seus pontos de vistas. Já a esfera pública refere-se a uma construção discursiva. No caso brasileiro, Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2011) conclui que existe uma desarticulação entre a esfera pública e o espaço público, principalmente quando se refere a situações que envolvem o princípio da igualdade e formas de tratamento igualitário. No caso das religiões afro-brasileiras, há sempre uma argumentação de que os espaços públicos são utilizados por outras religiões, mas que eles não possuem os mesmos direitos.

3Cabe esclarecer que, em algumas situações, acompanhamos as reuniões juntas, mas na maioria das vezes cada uma participou em um grupo. Merece destaque, também, a nossa participação no Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Intolerância e Discriminação Religiosa para a Promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, entre os anos de 2013 a 2015. Essa participação não será objeto de análise neste artigo, mas favoreceu fortemente a construção de nosso argumento, na medida em que vários participantes da CCIR e do Elos integravam o GT.

4A palavra era utilizada no grupo Elos para designar, segundo algumas tradições religiosas, os elementos da natureza (água, terra, ar, fogo) que correspondem ao divino. Aqui ela teria o mesmo sentido que “orixá”, “vodun” ou “inquice”. Salientamos que a mesma palavra poderia ser utilizada para designar as florestas, matas, selvas ou bosques como lugares sagrados, porque lá residem os deuses ou porque lá estavam um geossímbolo específico (uma árvore, pedra, animal), que são venerados como deuses ou espíritos (Boniolo 2014; Corrêa, Costa e Loureiro 2013).

5Sobre a relação com o sistema judicial ver Maggie (1992), Miranda, Correa e Pinto (2017), Silva Junior (2007); sobre o massacre ocorrido em Alagoas, conhecido como o quebra de Xangô, ver Rafael (2010; 2012).

6É importante esclarecer que, nos grupos, havia uma diversidade significativa de religiosos, as quatro conhecidas nações do candomblé, as linhas da umbanda, etc. No que se refere ao pertencimento político, a variedade também era grande. Notava-se uma pluralidade de filiações partidárias, bem como uma variedade de vinculações institucionais a ONGs, movimentos sociais, etc.

7Há que se observar que a pauta discutida tem direta correlação com a pauta apresentada por um dos mais importantes grupos dos movimentos negros, o MNU (Movimento Negro Unificado), que em março de 2017 realizou o 1° Seminário Sul/Sudeste de Formação Política: o impacto das reformas econômicas na população negra; história do movimento negro e suas lutas; racismo e luta de classes; escravidão negras, comissão da verdade e reparações; racismo e a questão parlamentar; negro, educação e cultura; religião de matriz africana; empoderamento da juventude negra; lutas e conquistas LGBT; luta das mulheres negras .

8Categoria nativa dos adeptos das religiões afro-brasileiras para o termo ‘oferenda’, dedicada a algum orixá, com comidas rituais.

9O termo “intolerância religiosa” está associado ao discurso dos integrantes da Comissão como anteposto à liberdade religiosa, associadas às manifestações de falta de respeito às diferenças de crença (Miranda 2010), relacionadas, quase sempre, às “ameaças neopentecostais” caracterizadas pela destruição de terreiros, além das agressões físicas e verbais aos praticantes dos cultos afro-brasileiros.

10O Projeto Legal é uma ONG que atua na área de Direitos Humanos, prestando atendimento sócio jurídico, principalmente, a crianças, jovens e mulheres. Fonte: http://www.projetolegal.org.br/index.php/institucional. Acesso em 18 de setembro de 2015.

11O CEAP é uma ONG ligada ao Movimento Negro e ao Movimento das Mulheres na cidade do Rio de Janeiro. Tem como um dos fundadores o “interlocutor” da Comissão. Fonte: http://ceaprj.org.br/a-instituicao-2/. Acesso em 18 de setembro de 2015.

12Ressaltamos que na composição inicial da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa era possível identificar integrantes de movimentos negros da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, a partir de divergência entre os membros de CCIR quanto a relacionar os “atos de intolerância religiosa” ao racismo, muitos militantes deixaram de participar das reuniões (ver Miranda 2014).

13O artigo 20 da Lei Nº 7.716, de cinco de janeiro de 1989, conhecida como Lei Caó, prevê reclusão e multa para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor etnia, religião ou procedência nacional (Silva 2009).

14O nome foi trocado para proteger a privacidade da interlocutora.

15Em 1997, a Lei 9.459, ou Lei Paim, acrescentou as categorias “etnia, religião ou procedência nacional” ao artigo primeiro da Lei Caó, e inclui também o parágrafo 3º do Artigo 140 do Código Penal, agravando a pena - para reclusão de um a três anos e multa - para a injúria, quando aludir ao uso de elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem (Silva 2009).

16O Programa Delegacia Legal foi implementado nas delegacias do Estado do Rio de Janeiro desde 1999, tendo como objetivo a modernização da Polícia Civil, tanto nas infraestruturas das delegacias, quanto na informatização dos seus registros de ocorrência (Lima 2009; Paes 2006).

17Sobre o sofrimento como narrativa de acesso a direitos, ver Mello (2010).

18A data está associada à morte da ialorixá Mãe Gilda, que faleceu após ver seu rosto na capa do jornal Folha Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, tornando-se a referência nacional na defesa da liberdade religiosa.

19Ver http://www.leiaja.com/cultura/2017/03/22/intolerantes-atribuem-doenca-de-arlindo-cruz-ao-candomble/, acesso em 22/03/2017.

20O Elos da Diversidade era parte de um programa (Programa Ambiente em Ação) da Secretaria de Estado do Ambiente com o objetivo de “promover” ações que relacionassem as práticas rituais de matriz afro-brasileira com a temática da preservação do meio ambiente.

21Localizado na cidade do Rio de Janeiro, o parque corresponde à maior floresta urbana replantada do mundo, com 3.953 ha de Mata Atlântica. Dados disponíveis em http://www.parquedatijuca.com.br/#index. Acesso em 18 de dezembro de 2017.

22A Curva do S situa-se na rua Édson Passos, no Alto da Boa Vista – um bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, ligando as zonas central, norte, sul e oeste.

23Assim como os integrantes da CCIR, os membros do Elos distinguiam as pessoas que participavam do projeto dos parceiros. Estes só compareciam aos eventos quando eram solicitados.

24O projeto de construção do Espaço Sagrado da Curva do S começou no final da década de 1990 com a explicitação do conflito entre religiosos de matriz afro-brasileira e funcionários do PNT provocado pela realização de oferendas nos espaços do parque. Para compreender as diferentes fases e tentativas de implementação do projeto, ver Boniolo (2014), Costa (2008), Nascimento (2013).

25Existem placas dentro do PNT sinalizando que as oferendas podem ser realizadas, mas não podem ser “deixadas”.

26Os principais representantes dessa tradição são os terreiros do Engenho Velho ou Casa Branca, o Gantois e o Axé Opô Afonjá, que concorrem pelo reconhecimento de suas tradições.

27Não há como deixar de considerar que esses objetos não eram tão disseminados nas práticas religiosas quando os primeiros registros dos ritos afro-brasileiros foram realizados por pesquisadores, imortalizados como os “clássicos”. No entanto, deve-se lembrar que contemporaneamente estão incorporados à vida cotidiana. Quem percorre o Mercadão de Madureira sabe que a folha da bananeira pode ser comprada nas barracas de ervas por valores que podem ser mais caros que os potes de plástico importados da China. Isso levanta uma questão interessante sobre a urbanização da cidade, que impacta os terreiros. Se antes estavam em áreas mais afastadas da cidade, cercada por matos e florestas, hoje estão presentes em áreas densamente urbanizadas.

28O geossímbolo representaria a produção simbólica pelo ser humano em um determinado território (Corrêa 2012).

Recebido: 24 de Novembro de 2016; Aceito: 19 de Outubro de 2017

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O site do InEAC reproduz aqui entrevista do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli Azevedo, pesquisador vinculado ao INCT, nessa segunda-feira 26/2/18, para o Jornal do Comércio para a jornalista Bruna Suptitz.

Em vigência há pouco mais de uma semana, a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro pode representar um risco para a garantia dos direitos individuais, avalia o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública. Ele critica a falta de planejamento, por parte da União, de como serão conduzidas as ações de combate ao rime organizado. Usando o exemplo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que representaram uma tentativa de aproximação do poder público com as comunidades mais vulneráveis da periferia carioca, Azevedo sustenta que a efetividade da ação dependeria de um trabalho conjunto da União, do Estado e do município, abrangendo outras áreas, como saúde e geração de emprego e renda. Nessa entrevista ao Jornal do Comércio, Azevedo afirma que o Rio de Janeiro não é o Estado com maior problema na área de segurança e avalia a medida tomada pelo presidente Michel Temer (PMDB) “mais como uma forma de obter dividendos eleitorais do que propriamente como uma política consequente de enfrentamento da violência”. A consequência, diz o professor, poderá ser um “endurecimento do regime político” no Brasil. - Jornal do Comércio

 

Jornal do Comércio – Qual a efetividade dessa ação de intervenção federal no Rio de Janeiro para resolver uma questão de segurança pública? Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O Rio de Janeiro, tanto o Estado quanto a cidade, tem enfrentado problemas na segurança pública há bastante tempo. Desde os anos 1980, no governo (Leonel) Brizola, houve o crescimento de grupos ligados ao tráfico de drogas, o que aumentou muito a capacidade desses grupos se armarem, ocuparem território e, de lá para cá, os diversos governos que foram se sucedendo nunca conseguiram dar uma resposta efetiva para essa situação. Isso até 2008, quando começaram a ser implantadas as UPPs, sob a coordenação do secretário de Segurança José Mariano Beltrame, que foram uma tentativa de ocupação desses territórios pela polícia de forma mais permanente, e isso trouxe resultados. Os dados de 2008 a 2015 mostram uma queda das taxas de homicídio e de criminalidade de maneira geral, então não dá para dizer que o Rio de Janeiro nunca teve uma política bem sucedida. As UPPs tiveram sucesso, só que tinham um limite: a pura e simples presença da polícia não resolve tudo. É preciso que haja outros serviços públicos, como saúde, educação, especialmente geração de emprego e renda nessas comunidades, para que o tráfico seja excluído de uma forma mais permanente, e para que os jovens tenham alternativas de vida que sejam viáveis. E isso não aconteceu. É preciso compreender que o crescimento da violência não é especificamente no Rio de Janeiro - que não está entre os estados mais violentos - mas é uma vitrine pela questão do turismo e por ser a cidade mais conhecida do país em nível internacional. Essa situação de deterioração das políticas de segurança do Rio já vinha acontecendo há algum tempo, dando margem para a intervenção do exército através das GLOs (Garantia da Lei e da Ordem), que é prevista constitucionalmente. A novidade agora é que há uma intervenção federal na área da segurança pública, que não tem caráter militar – retira a competência do governo do Estado e dá ao interventor. Tem se chamado de intervenção militar porque o interventor é um general. Poderia ser um político, um civil... JC – É adequado usar esse termo (intervenção militar)? Azevedo – Não é o mais adequado, na minha opinião. É uma intervenção da União no Estado, que não necessariamente deveria ser realizada por pessoas ligadas às forças armadas. Mas esse caráter acabou sendo dado. Até agora não está claro o que se pretende com essa intervenção, mas eu diria que há dois cenários possíveis, um mais positivo e outro - que me parece estar se consolidando - mais negativo. O favorável seria reconhecer que, quando há uma perda de controle do Estado na área da segurança pública, talvez o principal motivo seja a corrupção policial. Ou seja, os órgãos policiais, tanto militar quanto civil, não têm capacidade operacional, porque estão minados por relações promíscuas com o crime organizado. E, já que o governo estadual não consegue atuar e coibir essas práticas ilícitas, chama-se o governo federal. Não parece ser esse o foco. Até agora não se disse nada sobre isso e, pelo contrário, o foco vem sendo, cada vez e de uma forma mais explícita, a ideia de que, para combater a violência no Rio de Janeiro, é preciso que haja uma redução dos direitos e garantias individuais, como a ideia dos chamados mandados de busca e apreensão coletivos, para que, em determinadas áreas, a polícia tenha salvo-conduto para invadir residências sem que haja mandados de busca e apreensão específicos, como a lei prevê. Sabemos que ferramentas como essa são o caminho mais curto para um regime autoritário, em que não há controle por parte da sociedade sobre como agem as forças de segurança. São situações que levam aos abusos e que acabam se voltando contra a população de uma maneira geral, e não contra o crime, porque são muito pouco efetivas para coibir ou erradicar a criminalidade organizada. JC – Essa ação é necessária, era a única ou a melhor alternativa para tentar resolver o problema do avanço da criminalidade? Azevedo – Com certeza essa não era a melhor opção, especialmente por esse caminho que vem sendo proposto, de uma flexibilização das garantias legais para a ação das forças policiais e do próprio exército. O que precisaríamos seria o reforço dos órgãos estaduais ligados à segurança pública, das polícias civil e militar, tanto na capacidade investigativa quando de policiamento ostensivo, para retomarem o caminho que foi iniciado em 2008 de ocupação de determinadas áreas, acompanhadas de outros órgãos do poder público que pudessem também ter algum papel na prevenção. Não é isso que está sendo dito e proposto pelo governo federal e pelo interventor. Além disso, não houve nenhuma novidade nas últimas semanas que pudesse levar a essa conclusão de que há uma situação nova e exigiria algum tipo de atuação mais espetacular da União nessa área. Se formos olhar as estatísticas do Rio de Janeiro, não há uma explosão da criminalidade como o discurso do governo federal tem feito crer. O que houve foi, durante o carnaval, cenas filmadas de práticas criminais como arrastões, assaltos, que chamaram muita atenção até pelo caráter midiático que foi dado. Haveria, sim, a possibilidade de parceria entre União, Estado e município, para que outras iniciativas fossem tomadas, muito mais adequadas e muito mais vinculadas a uma ideia de legalidade, de atuação conjunta, com resultados mais efetivos do que uma decisão como essa – até agora não se disse qual é o foco, quais são os objetivos, indicadores que serão utilizados. JC – O comandante do exército diz querer garantia para agir sem o risco de surgir uma nova comissão da verdade. O quanto isso nos remete a um período de ditadura militar? Azevedo – O que essa frase denota é a ideia de que a participação do exército nas políticas de segurança só pode ocorrer mediante uma espécie de salvo-conduto preventivo, a partir do qual qualquer ato praticado pelos militares está salvaguardado, é considerado legítimo e portanto não é passível de responsabilização criminal dos seus autores. É isso que se pretende. Isso começou a ser implementado no ano passado, quando se transferiu a competência dos crimes praticados por militares em ação na segurança pública para a Justiça Militar, mudança que já foi denunciada por setores ligados à defesa dos direitos humanos. Agora se pretende ir além e dar aos militares e às próprias polícias uma possibilidade de atuarem de forma a utilizarem a violência letal contra pessoas que estão em situação duvidosa. Isso, na verdade, é uma espécie de legitimação da pena de morte no Brasil, de maneira informal, coisa que já acontece muitas vezes. Mas ainda temos, pelo menos enquanto país está sob a égide de uma Constituição vigente, caminhos legais para coibir essas ações quando são praticadas de forma indevida. JC – Existe a possibilidade de que ações como essa se estendam para outros estados? Azevedo – A ação no Rio de Janeiro tem um caráter talvez muito mais espetacular e ligado ao contexto político de um ano eleitoral. Portanto, não podemos desconsiderar a importância dessa intervenção do ponto de vista dos interesses mais imediatos do atual governo. Possivelmente haverá demanda de outros governos para que essa intervenção aconteça. O Exército já está atuando em outros estados naquele mecanismo das GLOs. Se alguns resultados forem obtidos a curto prazo no Rio de Janeiro, no sentido de uma redução, pelo menos do ponto de vista mais midiático, da violência, talvez essa demanda se dissemine para outros estados e tudo isso acabe servindo muito mais como uma forma de obter dividendos eleitorais do que propriamente como uma política consequente de enfrentamento da violência no Brasil a médio e longo prazo. JC – O Rio Grande do Sul seria um desses Estados? Azevedo – Me parece que não. O Rio Grande do Sul vive uma situação de crise na segurança pública há algum tempo, no entanto essa crise já teve um ápice no ano de 2016, quando houve a troca na secretaria da segurança e a vinda da Força Nacional. De lá para cá, pelo menos houve melhora em alguns indicadores criminais, o que acaba diminuindo um pouco a tensão e a pressão sobre o governo estadual. JC – O governo está se aproveitando do ano eleitoral para inserir uma pauta política, como agenda positiva? Que efeito isso poderá ter no cenário eleitoral desse ano? Azevedo – Não há a menor dúvida de que o tema da Segurança Pública será muito explorado durante os debates eleitorais. Há uma maioria formada na população brasileira seduzida pelo discurso populista de que, para o combate ao crime, a democracia é um problema, e que é preciso flexibilizar regras e garantias para que as forças de segurança possam atuar e ter resultados. Isso é uma grande ilusão, porque, pelo contrário, desde 1988 até hoje o Brasil não conseguiu colocar as suas forças de segurança pública sob a égide de um regulamento constitucional e democrático. Há muitos problemas históricos que têm a ver com toda uma tradição autoritária e inquisitiva do sistema de justiça e segurança que fazem com que as nossas polícias sejam pouco profissionais, extremamente violentas e muito ineficazes para realizarem as suas atribuições, especialmente na investigação criminal. O que estamos vendo com a intervenção vai no sentido do agravamento desse quadro, ou seja, ao invés de enfrentar os problemas, estamos presenciando uma volta ao passado. Diante disso, a situação é bastante difícil, na medida em que há essa demanda social por segurança, um discurso populista que dialoga com essa demanda, que em ano eleitoral tem muita potencialidade para garantir a eleição de candidatos num contexto de crise política de fragilização dos partidos e de reforço de caminhos que não tem nenhuma perspectiva do ponto de vista democrático. JC – Essa pode ser considerada uma estratégia do governo para desviar o foco da reforma da Previdência, cuja tendência era ser derrotada no Congresso Nacional? É um jogo de interesse? Azevedo – Sem dúvida. Esse governo tem muita dificuldade de se manter, e vem se mantendo não porque tenha respaldo popular, mas há sim apoio do meio empresarial e de parte da mídia. Esse apoio é dado muito em nome das prometidas reformas – trabalhista e da Previdência – que agradam ao mercado e seriam a promessa de crescimento econômico a partir da sua implementação. Mas sabemos que a situação não é tão simples, a reforma da Previdência teve resistência da própria base do governo. Não podemos esquecer, dentro desse governo há muitos investigados e acusados de crimes, que têm no foro privilegiado sua única possibilidade de evitar uma responsabilização. Para isso, vão lançar mão de todo tipo de recurso, na medida em que têm o poder na mão, para, em ano eleitoral, conseguirem se manter nesses cargos. Isso é grave, e utilizar o Exército como ferramenta para obtenção de dividendos eleitorais é mais grave ainda. Dar ao Exército esse papel de interventor no Brasil, um país que tem uma longa história de intervenções militares, de regimes militares, de tutela das forças armadas sobre a sociedade civil e o sistema político, tudo isso reaviva o receio de que estejamos caminhando para o endurecimento do regime político. É importante que a sociedade brasileira tenha clareza do que isso pode produzir e tanto os cidadãos quanto as instituições possam tomar os devidos cuidados para que possamos barrar esse processo de paulatina degradação da ordem democrática construída com tanta dificuldade a partir de 1988.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é natural de Porto Alegre e tem 49 anos. É graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, 1991), especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública (1996), mestre (1999) e doutor (2003) em Sociologia pela Ufrgs, com estágios de pós-doutorado em Criminologia na Universitat Pompeu Fabra (Espanha, 2009) e na Universidade de Ottawa (Canadá, 2013). Atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), atuando nos programas de pós-graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais. Pesquisou sobre temas como reformas penais e administração da justiça penal, penas alternativas, políticas públicas de segurança e atendimento a mulheres vítimas de violência. É líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (Gpesc) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É pesquisador associado e membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-Ineac).

Acontece entre 22 e 23 de Março de 2018, no Rio de Janeiro- RJ, a I Jornada Nacional sobre Racismo Institucional e Sistema de Justiça. O encontro pretende reunir pesquisadoras e pesquisadores, profissionais e ativistas que investiguem, trabalhem e atuem com temáticas relacionadas ao racismo institucional, em especial no sistema de justiça.

A jornada pretende apresentar resultados de pesquisas e experiências oriundas de intervenções profissionais e políticas a respeito das temáticas correlacionadas e reunir especialistas, ativistas com experiências individuais e coletivas, de ação acadêmica, institucional e política, com o intúito de contribuir para a discussão e difusão de conhecimento teórico e prático sobre o tema, e, sobretudo para a criação e fortalecimento de uma rede que se articule a nível nacional para incidência política e em pesquisas.

A I Jornada Nacional sobre Racismo Institucional e Sistema de Justiça (RJ) contecerá na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, na Avenida Marechal Câmara, 271, Centro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Maiores informações no endereço: https://www.geledes.org.br/i-jornada-nacional-sobre-racismo-institucional-e-sistema-de-justica-rj-faca-sua-inscricao/

O site do InEAC disponibiliza o link no facebook do programa Conexão Guaíba, desta quinta, dia 23 de fevereiro, que ouviu dois especialistas para analisar a polêmica do desarmamento. Um deles é o pesquisador vinculado ao INCT/InEAC e Professor de Segurança Pública e Criminologia da PUCRS, Rodrigo Azevedo falou dos riscos de se ampliar o acesso da população às armas.

Acesse o link: https://www.facebook.com/radioguaibaoficial/videos/2007188205962360/

NOTA DE REPÚDIO DA ANPUH-BRASIL À DECLARAÇÃO DO GENERAL EDUARDO VILLAS BÔAS

A ANPUH-BRASIL vem repudiar com veemência o teor da declaração feita na reunião do Conselho da República, na segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018, pelo Comandante do Exército, General Eduardo Villas Bôas, quando, a propósito da intervenção federal no Rio de Janeiro, afirmou que: “militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A preocupação do general, por si só, indica a possibilidade de que Direitos Humanos sejam violados na operação em curso, na medida em que a Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, teve a finalidade de esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro ocorridos entre 1946 e 1988. Instalada em 16 de maio de 2012, com competência apenas para investigar e não para julgar e punir os responsáveis, a Comissão Nacional da Verdade foi fruto da incansável luta dos familiares de torturados, mortos e desaparecidos durante o regime militar, respaldados pela sociedade civil organizada. Seu trabalho e desdobramentos têm sido fundamentais para que, finalmente, se possa escrever a história de uma das épocas mais sombrias pelas quais o Brasil passou, garantindo o direito sagrado de o povo brasileiro conhecer a verdade sobre o seu passado para construir o seu futuro. E, certamente, não queremos um futuro em que as arbitrariedades e atrocidades cometidas se repitam. Por isso, a ANPUH-BRASIL expressa sua indignação com a citada declaração e, sobretudo, sua preocupação de que a manifestação do general esteja apontando para a previsão de que a intervenção federal no Rio de Janeiro, que também repudiamos, possa ocorrer ao arrepio do estado democrático de Direito e fora do quadro legal, acompanhada de práticas violentas, semelhantes àquelas demonstradas pela Comissão Nacional da Verdade, ferindo, assim, mais uma vez a recente e frágil democracia brasileira.

O site do InEAC republica aqui entrevista feita pelo Observatório das Metrópoles com o antropólogo Lenin Pires Diretor da Graduação em Segurança Pública da UFF e pesquisador vinculado ao INCT-InEAC.

Intervenção federal no Rio de Janeiro e o aprofundamento do estado de exceção

O Governo Federal assinou decreto, no dia 16 de fevereiro, para a intervenção federal-militar no estado do Rio de Janeiro. O decreto — lançado às pressas como uma alternativa política ante a derrota da aprovação da reforma da previdência — parece desenhar um quadro ainda mais trágico para o estado fluminense: o de laboratório para uma Intervenção Militar que não tem planejamento e que exige um salvo-conduto para sua missão, o que provavelmente incidirá sobre os direitos constitucionais. É o que afirma em entrevista para o Observatório das Metrópoles o professor e antropólogo Lenin Pires, diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC/UFF).

A Rede INCT Observatório das Metrópoles está empenhada no debate e na busca de soluções para a crise fiscal, política e institucional que vive o Estado do Rio de Janeiro. O decreto do Governo Federal de intervenção militar na segurança pública é apenas mais uma peça desse quadro trágico no qual está inserida a população fluminense desde o apagar das luzes das Olimpíadas 2016.

Parte dessa crise é de responsabilidade do próprio PMDB — que dominou o Estado durante mais de uma década e montou uma esquema de corrupção institucional que minou os já frágeis alicerces do estado do Rio. No último ano, o Governo Pezão entrou em uma crise sem fim, que levou mais uma vez à criminalidade sistêmica presente nas ruas.

Nesta entrevista com o antropólogo Lenin Pires, do InEac/UFF (instituto especializado no debate sobre Segurança Pública e administração de conflitos), temos uma análise dos pressupostos da intervenção federal, com um detalhamento do quadro atual das instituições policiais do Rio e o que está em jogo neste processo.

ENTREVISTA — LENIN PIRES, PESQUISADOR INCT-INEAC

Por Breno Procópio, Gestor de Comunicação do INCT Observatório das Metrópoles

O que significa essa intervenção federal-militar no estado do Rio de Janeiro? Isso vai solucionar o problema?

Lenin Pires. A intervenção federal no Rio de Janeiro neste momento representa uma jogada política. Muito bem urdida, por sinal. Mas a gente não pode confundir o contexto com o pretexto. O contexto da segurança pública no Rio de Janeiro — como em qualquer outro estado da federação — é grave, complexo, de difícil solução a curto prazo. É um contexto muito sério que coloca investimentos, vidas e muitos outros fatores em risco. Ou seja, é um contexto muito delicado.

Agora, a intervenção federal no Rio como foi anunciada é um pretexto, que está se utilizando da imagética construída nesse contexto de criminalidade sistêmica para produzir um efeito político para uma parte do PMDB — uma parte do PMDB do Rio, como também do PMDB nacional na figura do Michel Temer, sendo que esse está tentando se manter vivo no cenário político.

O PMDB está há décadas na cena política brasileira, muitas vezes ocupando um papel central. É só lembrar os nomes de Sarney, Temer, Itamar, entre outros. Esse partido elege sempre muitos deputados, senadores; tem força sobre as estatais e os negócios públicos. Então, é isso que está em jogo. Lembrando que o Temer tem atualmente 3% de aceitação. Ou seja, não pode pleitear uma reeleição. Creio que tampouco a intervenção lhe dará condições para o pleito, como advogam seus marqueteiros.

Ao mesmo tempo, Temer mostra sagacidade ao perceber que a agenda da “segurança pública” é a agenda possível para desviar a atenção da opinião pública e do eleitorado para a sua derrota em relação à reforma da previdência — derrota que sepultaria o seu governo. Essa avaliação já está sendo feitas por muitos analistas.

Agora Temer e o PMDB tentam ganhar uma sobrevida fazendo uso de um tema de grande clamor público, utilizando um expediente constitucional nunca tentado. Corremos o risco ainda de ver essa solução se espraiar para outros estados da federação. Digo isso porque a questão da criminalidade violenta está complicada no Ceará, no Rio Grande do Norte, em Roraima (acrescida por outras razões) e em outros estados. Logo, podemos ver o Governo Federal querendo implementar esse instrumento como solução para as políticas de segurança em vários estados do país.

O que esse quadro aponta? Em primeiro lugar, que podemos ter um interventor, no caso um militar, que não aceita se submeter a uma administração civil. E o decreto de Michel Temer já garante isso como prerrogativa, visto que afirma que o Interventor Federal pode requisitar o que precisar do Estado para exercer a sua função na segurança pública. E o Interventor não precisa se subordinar, no exercício do seu mandato, ao Governador eleito.

Isso é muito grave. Desde o final da ditadura não vemos os militares ter esse tipo de expediente para atuar; isto é, não precisam se reportar a um representante eleito. Ou seja, as eleições não valem mais. E é curioso pensar que, no caso de Temer, não se trata de um presidente eleito por méritos próprios a lançar mão de tal expediente.

Nos últimos dias o Comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. Essa declaração parece grave, primeiro porque aponta o improviso dessa intervenção federal. E, segundo, porque constrói a ideia de um momento de exceção como na ditadura, como se o Exército devesse ter carta branca para matar.

Lenin Pires. Quer dizer, o Comandante do Exército não quer que seus comandados se submetam a nenhum protocolo de garantias constitucionais de direito e proteção à vida. Temos uma conjuntura, por um lado, com um Interventor Militar (general Walter Souza Braga Netto) que não tem plano; ele foi trazido a essas circunstâncias por uma vontade presidencial, por uma agenda política presidencial. O Braga Netto não tem uma articulação prévia com as instituições de segurança do Estado; por isso ele vai precisar improvisar a partir dos seus elementos e dos recursos que tem no Exército, ou seja, a partir de suas práticas discursivas que se arquitetam na construção de um inimigo a ser eliminado.

O grande risco é ver tudo aquilo que sustenta o Estado democrático de direito, pelo menos em teoria — e que vem embalando todo o conjunto de instituições no Brasil — ser colocado definitivamente em segundo plano. Passar a imperar na prática um outro regime de direitos.

Quero chamar atenção pra isso. Na prática isso já existe no Brasil inteiro para determinados segmentos populacionais. No Rio de Janeiro, em particular, na Baixada Fluminense, Zona Oeste e parte da Zona Norte já predomina na prática um outro regime de direitos. Porém, isso nunca foi oficial, isso sempre foi oficioso. E sempre foi levado a cabo de maneira marginal, inclusive com a possibilidade de punição, em alguns casos, para os agentes de segurança que promovem tais iniciativas.

No entanto, o mais grave é que agora não. A intervenção militar parece querer um “salvo-conduto” para atentar contra as liberdades individuais — como, por exemplo, o pedido para fazer as buscas e apreensões coletivas. Quero lembrar que quando o jornalista Tim Lopes morreu, um dos expedientes usados para encontrar o Elias Maluco (assassino do jornalista) foi esse. Quer dizer, uma juíza deu esse mandado de busca e apreensão coletiva para a polícia entrar na favela e revistar qualquer casa. O que, gradativamente, passou a ser criticado.

Mas quero dizer que isso acontece sempre no Rio — mesmo sem a autorização legal. Quando houve a Ocupação do Complexo do Alemão em 2010, naquele episódio foram várias as casas reviradas, foram várias as casas que acabaram sendo vitimadas pelo que é chamado de “espólio de guerra”. Então, alguns policiais militares por se acharem em guerra entraram nessas casas e tiraram dinheiro, ar condicionado, computadores, entre outros objetos. Ou seja, era um espólio de guerra, já que aquela população estava submetida a uma força redentora.

Enfim, este contexto de segurança pública — contexto construído imageticamente a partir de fenômenos materiais objetivos, mas hiperbolizados por recursos midiáticos a fim de provocar comoção popular — está a serviço de provocar expedientes jurídicos que pode fazer com que toda e qualquer casa no Rio de Janeiro suspeita seja objeto de ações de busca a apreensão. E eu não concordo que isso possa ser feito em favela. Mas quero que as pessoas entendam que na linguagem jurídica quer dizer que isso pode ser feito em qualquer lugar, não apenas em favelas.

Mas acaba que a principal vítima da intervenção é também a população pobre….

Lenin Pires. Principalmente o pobre. A partir da intervenção, corremos o risco de ver qualquer casa sofrendo uma ação do exército por podem ser verificadas. Mas, certamente, a do pobre, preto e favelado será a primeira e ocorrerá repetidas vezes. Nesse sentido, eu acredito que já temos um cenário com contorno ditatoriais e uma lógica de poder — a serviço de interesses muito específicos — que vai buscar calar, vai buscar amedrontar, coagir, etc…

Você está dizendo então que com a intervenção federal haverá um aprofundamento do estado de exceção no Rio de Janeiro — uma prática que já existia?

Lenin Pires. Sim. A intervenção federal abre uma possibilidade para a expansão e institucionalização dessas práticas que já existiam no território fluminense — principalmente nas comunidades mais pobres. Agora, com a intervenção institucional vamos ter militares que não estão preparados para administrar conflitos civis respeitando os princípios democráticos, como os direitos civis e direitos humanos. E esses mesmos militares vão estar a frente das corporações de polícia onde um significativo numero de policiais já cumpriam essa função. Estes, bem ou mal, desenvolviam uma inteligência a respeito, ainda que não institucionalizadas para efeitos de planejamento do policiamento ostensivo e investigativo. Mas qual a inteligência que o exército irá desenvolver acerca de situações e contextos absolutamente desconhecidos?

Acredito que podemos ver violações. E evidentemente essas violações poderão ocorrer nesses lugares onde se diz que são “áreas conflagradas”, onde há tráfico de drogas e tal. A esta altura, quero chamar a atenção que essa intervenção quer mostrar serviço para uma camada da população que quer uma “mão dura” do Estado para lhe conceder segurança. E se, nesse caso, for necessário violar a Constituição Federal isso poderá ocorrer.

O Comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, disse que quer uma cobertura jurídica para preservar a integridade dos membros da tropa ante a justiça militar. Ou seja, ele quer que haja um dispositivo jurídico que ampare o Exército nessa intervenção, já sabendo que violações aos direitos civis poderão ocorrer.

Quer dizer, o Exército só prestaria contas para a Justiça Militar e não para a sociedade?

Lenin Pires. Isso por meio de uma lei já aprovada pelo Governo Temer em 2017, que já vinha sendo gestada no rescaldo desse enorme processo que remonta a Junho de 2013, com as grandes manifestações. Quando a população foi para a rua numa enorme polifonia exigindo direitos, isso desencadeou um processo de recrudescimento de um discurso fascista e, do ponto de vista político, de desmonte dos direitos sociais, direitos econômicos, e também dos direitos civis promulgados em 1988.

O contexto atual já não permite dizer que a nossa Constituição é cidadã, como afirmou orgulhoso Ulisses Guimarães há 30 anos atrás. Ela está erodida por projetos de emenda constitucional que dilapidam os seus avanços sociais. Então, temos em curso nesse período todo a implantação de um Estado menos democrático, e que ser for necessário chegar em um modelo de exceção ele vai chegar. Se assim for o interesse do Capital, dito de maneira genérica — interesses econômicos, empresariais, financeiros globais —, isso vai acontecer.

E como isso está se dando no contexto da segurança pública?

Lenin Pires. Na segurança pública há um projeto, por inspiração norte-americana, como se sabe, de promover uma guerra ensandecida sobre a distribuição de drogas e armas. As drogas — pelo menos as mais conhecidas — são produzidas de forma não legalizadas (como cocaína, maconha etc). Em alguns lugares como Uruguai, EUA (estado da Califórnia, por exemplo) temos experiências de trazer para o mercado legal uma variação dessa produção para consumo vinculado à saúde, por exemplo. Agora no Brasil, Argentina, EUA (de maneira geral) a distribuição dessas drogas é considerado o grande problema do mundo. Por isso mesmo, as drogas sintéticas estão crescendo em termos de consumo, pois se tornam uma alternativa para contornar estratégias de monitoramento, bem como a baixa qualidade do que é ofertado nos mercados ilegais contumazes. Ou seja, esse mercado é muito complexo e atende a estratégias globais de produção e distribuição.

Agora, combater somente a distribuição não vai resolver. A polícia — assim como o Exército está se propondo agora — sempre combateu a distribuição. Mas a produção nunca foi problematizada. E a demanda de consumo de todas as drogas também nunca foi problematizado. A Política vem fazendo esse combate à distribuição com um insucesso total, por quê? Porque há uma série de ações sociais que deviam ser, concomitantemente, desenvolvidas para tratar e conscientizar o usuário. E estou dizendo isso — fazendo coro a vozes de muitos especialistas — que apontam que o uso da droga não é um problema; mas sim o abuso. E o abuso se instaura diante da insuficiência de dispositivos que contribuam para a discussão sobre os usos e os riscos de seus exacerbamentos para os indivíduos e para a sociedade.

Enfim, me parece que vai continuar havendo uma demanda pelo uso da droga, mas o país não desenvolve políticas sociais, educativas, de saúde pública para encarar o assunto. A solução do Estado é colocar a Polícia para combater. Mas aí temos o policial sem saúde, sem educação, que vive na periferia, com dificuldades de transporte e para manter a sua família, um policial proletarizado… o que ele pode vir a fazer? Ele pode, como acontece já, ser usuário das mesmas drogas que ele é estimulado a combater. Ou pode se integrar marginalmente a esse mercado de drogas, particularizando o mandato legal que lhe é outorgado e, como diz Michel Misse, transformá-lo em mais uma mercadoria ilícita.

E falta inteligência para a Polícia do Rio de Janeiro e para a Polícia do Brasil de um modo geral?

Lenin Pires. O que precisa ser dito aqui é que não existe uma inteligência integrada. Os policiais que atuam nas ações ostensivas desenvolvem conhecimentos sobre os territórios da cidade, sobre as dinâmicas locais do crime, sobre os sujeitos que atuam como varejistas nesses mercados, etc. Só que, em geral, o policial usa isso de forma particularizada. Ou seja, não há uma inteligência integrada, institucionalizada que possa consolidar dados para servir ao policiamento preventivo e às ações ostensivas com alto grau de eficácia e efetividade, do ponto de vista da promoção da justiça.

Se inteligência for sinônimo de informação sistematizada ela existe, mas não está institucionalizada. E isso ocorre na Polícia Civil e na Polícia Militar. Talvez exista na Polícia Federal — vimos com a Operação Lava Jato que é possível fazer. Que a Polícia, a partir de determinados interesses políticos, pode desenvolver uma inteligência institucionalizada visando um certo objetivo. Mesmo que no caso da Lava Jato o objetivo final tenha um viés claramente político partidário. Ou seja, como excepcionalidade.

E quais os efeitos que podemos esperar com a intervenção federal no Rio?

Lenin Pires. Primeiro, podemos ver o recrudescimento do arbítrio, o cerceamento da circulação das pessoas pela região metropolitana do Rio de Janeiro; e o crescimento de vítimas fatais entre policiais e militares, entre criminosos e, muito provavelmente, entre população civi que habita territórios de conflito. Quer dizer, a população que está neste território, mesmo não envolvida nas dinâmicas criminais aqui consideradas, vai ser mais uma vez estigmatizada. Essa força que vai atuar na intervenção não terá constrangimentos legais para buscar identificar quem é quem. E isso sempre aconteceu no Rio de Janeiro.

Como pesquisador do InEAC — instituição que pesquisa o tema da segurança pública e administração de conflito — na tua opinião qual a saída de médio e longo prazo para a diminuição da criminalidade no Rio? O que precisa ser feito?

Lenin Pires. Vivemos uma crise institucional no Brasil já algum tempo, desde o processo de impeachment da presidente Dilma Roussef. Desde essa época, muitos pesquisadores intelectuais vêm defendendo a necessidade de eleições gerais no país. Entendo que, no contexto atual, o Governo Federal está tentando uma saída com os recursos que tem, para ganhar uma sobrevida, e ter influência política. Mas essa crise gerou uma erosão na credibilidade das instituições, e à não governabilidade.

No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, não temos mais governo. E a Prefeitura da capital e principal cidade da região metropolitana também já está contaminada pela crise, e está perdendo governabilidade. E acho que não é possível pensar uma solução para as políticas de segurança pública sem resolver o problema da governabilidade, esse problema institucional grave.

Por que digo isso? Porque não vejo o governo Pezão com capacidade para fazer aquilo que tem que ser feito. Ou seja, chamar as instituições de segurança pública e estabelecer pactos com essas instituições para integrar suas ações, suas inteligências. E mais, buscar apoio da população para sair da crise. E a população, por sua vez, também se integrar no processo e sair do lugar da rivalidade (esquerda e direita) e se unir para sair da crise. Mas para isso você precisa de uma liderança, de um pacto maior, e de governabilidade.

Do outro lado, a Segurança Pública vive um contexto grave porque abriga interesses econômicos que são primordialmente vinculados a princípios neoliberais — desassociados dos Estados-Nação. Ou seja, os interesses econômicos não estão necessariamente interessados na democracia, ou seja, não importa se a intervenção vai matar muitos, o que a Polícia vai fazer, ou o Exército. Por quê? Porque é muita grana envolvida na área da segurança, envolvem muitas empresas grandes — indústria química, de produção de armas, saúde etc.

O México, por exemplo, tentou resolver o problema como o Brasil está fazendo agora — colocando o exército nos territórios ocupados pelo cartel. O que aconteceu? O Exército passou a integrar as estruturas do tráfico.

Enfim, o risco é muito grande. Claro que nesse primeiro momento será preciso “enxugar o gelo”, ou seja, retomar as dinâmicas de controle territorial, contendo os grupos armados na rua, contendo os assaltos na Linha Amarela, Linha Vermelha, nas saídas rodoviárias — isso precisa ser controlado. Mas isso é trabalho para a polícia. Ela não só detém o mandato legal, como também dispões dos recursos técnicos e materiais, internalizados em sua expertise profissional e em sua economia de procedimentos. De outro lado, na parte da Política é necessário apostar na profissionalização dos agentes, já que os salários são ruins, as escalas de trabalho muitas vezes aviltantes. Ou seja, o contexto requer profissionalização das polícias, inteligência institucionalizada, integração e, como diz a professora Jacqueline Muniz, responsabilização social.

E nada disso vai adiantar se não houver uma mudança de concepção em relação ao mercado de drogas. Muitos especialistas — como Roberto Kant, Jorge da Silva, Michel Misse, Julita Lemgruber, entre tantos outros — vêm advogando sobre a necessidade de discutir a descriminalização das drogas. E nesse ponto até o Fernando Henrique Cardoso concorda, ou seja, temos que pensar mudanças nesse panorama das dinâmicas de repressão.

http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/intervencao-federal-no-rio-de-janeiro-e-o-aprofundamento-do-estado-de-excecao/

Em apoio à professora Jacqueline Muniz e em defesa da igualdade jurídica e das liberdades democráticas

Os professores do Departamento de Segurança Pública, os pesquisadores associados ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC), e demais membros da comunidade universitária, vem a publico para se posicionar em irrestrito apoio a nossa colega, professora Jacqueline de Oliveira Muniz, que tem sido objeto de ataques constantes nas redes sociais, em razão da impressionante repercussão de sua didática exposição contrária à intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro na edição das 10h do Jornal GloboNews, de 17/02/2018.

Os ataques, extremamente reduzidos diante dos milhares de posicionamentos que se mostram satisfeitos, quando não agradecidos, diante dos esclarecimentos promovidos pela professora, revelam o desespero diante dos efeitos de desmonte da farsa pirotécnica construída em torno da chamada intervenção federal. E se coadunam com as mentalidades regressivas que atuam, já há algum tempo, na dilapidação e sucateamento das instituições democráticas, em favor de um despotismo voltado para maior empoderamento e enriquecimento de grupos e indivíduos subservientes aos interesses de um capitalismo selvagem. Por outro lado, são posturas que destilam misoginia e preconceito, segregando ódio, voltados para incrementar a vitimização de minorias sociais construídas, particularmente mulheres, homossexuais e transgêneros, pobres e grupos étnicos desfavorecidos.

A professora Jacqueline Muniz está sendo atacada por uma razão muito simples. Ela demonstrou para todo o país o amplo conhecimento que detém sobre assunto considerado de domínio de poucos, especialmente atores externos à sociedade civil. O que não nos surpreende, já sua competência é resultado de mais de duas décadas de pesquisas e atuação profissional em diferentes instituições académicas, como também nos poderes executivos em diferentes esferas de governo. Razão pela qual foi convidada a lecionar em dezenas de academias de policia no Brasil e na América Latina sendo, invariavelmente, homenageada pelos policiais com os quais tem contato.

É possível que o que mais incomode as mentes subservientes às estratégias anti-democráticas seja o domínio discursivo demonstrado pela professora diante das lentes midiáticas, geralmente apontadas para distorcer a realidade. Dessa vez, ao que parece, a lente é que foi distorcida, revelando as estratégias hipócritas dispostas a brincar com vidas humanas para mero deleite de um poder urdido por praticas golpistas dispostas a se perpetuarem. A professora demonstrou, de forma singular, que a produção da Universidade Pública, calcada na indissociação entre pesquisa, ensino e extensão - a mesma que o governo federal e seus aliados querem destruir - pode e deve estar a serviço da promoção do Estado Democrático de Direito, onde as leis e a constituição federal sejam respeitadas, como é a posição desse departamento e desse instituto.

Finalmente, os esforços institucionais de toda a comunidade que integra o InEAC, bem como o DSP, se voltam para os estudos dos processos de administração de conflitos e, nestes, para a segurança publica não apenas como mero objeto da curiosidade científica. Pensamos esta ultima como uma dimensão resultante de interações sociais objetivas e, portanto, eivadas de subjetividades que merecem tratamento cientifico de natureza interdisciplinar. As problematizações e perspectiva críticas promovidas por este corpo docente na abordagem da referida temática estão a serviço de projetos que parecem interessar amplamente a sociedade. Começando por socializar os estudantes para a aquisição de conhecimentos e competências que possibilitem o desenvolvimento do pensamento autônomo e respeito àsdiferenças presentes nos processos comunicacionais interativos. Por isso mesmo nos posicionamos em defesa do Estado Democrático de Direito, das garantias individuais e coletivas, bem como da promoção equitativa da justiça para além dos termos meramente formais. Não é possível falar de segurança pública sem nos atermos à defesa da educação pública em todos os níveis, entre outros a promoção de políticas sociais que atendam indistintamente a todos os cidadãos.

Assinam:

Cristiane Reis (DSP/UFF)
Danieli Machado Bezerra (DSP/UFF)
Daniel Ganem Misse(DSP/UFF)
Izabel Nunez (DSP/UFF)
Klarissa Platero (DSP/UFF)
Lenin Pires (DSP/UFF)
Luciane Patricio (DSP/UFF)
Ludmila Antunes (DSP/UFF)
Marco Aurelio Gonçalves Ferreira (DSP/UFF)
Paula Pimenta (DSP/UFF)
Pedro Heitor Barros Geraldo (DSP/UFF)
Vivian Gilbert Ferreira Paes (DSP/UFF)
Vladimir Carvalho Luz (DSP/UFF)

Apoiam também:
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – wwwineac.uff.br) e demais membros da comunidade universitária.

Roberto Kant de Lima - (Coordenador - INCT-InEAC)

Sidney Mello (Reitor da UFF)

Antonio Claudio da Nóbrega (Vice-Reitor da UFF)

Simoni Guedes (Depto de Antropologia/UFF)

Ana Paula Mendes de Miranda (Depto de Antropologia/UFF - Coordenadora do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública )

Fábio Reis Mota (Depto de Antropologia/UFF e coordenador do NUFEP)

Lucía Eilbaum (Depto de Antropologia/UFF)

Edilson Márcio Almeida da Silva (Coordenador do Programa de Antropologia/UFF)

Felipe Berocan Veiga - (Depto de Antropologia/UFF)

Glaucia Mouzinho - (Ciências Sociais UFF/Campos)

Soraya Silveira Simões -IPPUR/UFRJ

Kátia Sento Sé Mello - NUSIS/UFRJ

Marco Antonio da Silva Mello - IFCS-UFRJ

Lana Lage - (UENF- UFF-InEAC)

Rodrigo Guiringhelli Azevedo - (PUCRS)

Michel Lobo - (InEAC-UFF e IESP-UERJ)

José Colaço (Neanf/UFF e InEAC/UFF)

Frederico Policarpo - (professor do curso de políticas públicas / Uff )

Bárbara Lupetti - (UFF e UVA)

Andrés del Rio - (chefe do departamento de geografia e políticas públicas/ Uff)

Alberto Di Sabbato - (Faculdade de Economia/UFF)

Maíra Machado-Martins - (Departamento de Arquitetura - PUC-Rio)

Talitha Rocha - (PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Leticia de Luna Freire - (Dep. Ciências Sociais e Educação - UERJ)

Marcos Verissimo - (INCT-InEAC)

Paloma Monteiro (PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Vera Ribeiro Almeida S. Faria - (InEAC e PPGSD/ UFF)

Andréa Soutto Mayor - (InEAC/Departamento de Psicologia de Campos)

Gabriel Borges da Silva - (PPGSD/UFF é InEAC/UFF)

Rolf Malungo de Souza - (Departamento de Ciências Humanas e coordenador do Necter)

Natália Brandão - (PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Aureanice de Mello Correa - (coordenadora do PEARGEC/UERJ)

Roberta de Mello Correa - (PPGA/UFF e INEAC/UFF)

Patricia Maya Monteiro - DPUR/UFRJ

Yolanda Gaffree Ribeiro - (Departamento de Sociologia/IFCS/UFRJ e INEAC/UFF).

Flavia Medeiros - (Pesquisadora PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Fabio de Medina da Silva Gomes - (PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Hully Falcão - (PPGA/UFF e InEAC/UFF)

Eduardo Batitucci - (Fundação João Pinheiro)

Luiza Aragon Ovalle - (PPGA/UFF e INCT/INEAC)

Jacqueline Sinhoreto - (Gevac UFSCar)

Victor Cesar Torres de Mello Rangel - (PPGPS/UENF e InEAC/UFF)

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto - (Professor Ppga/ Coordenador do Neom-Uff)

Laura Graziela Gomes - (GAP/PPGA/UFF)

Daniel Simião - (dep antropologia UnB)

Márcia Maria Menendes Motta - (Coordenadora do INCT PROPRIETAS)

Jussara Freire - (InEAC - Ciências Sociais UFF Campos)

Rogerio Lopes Azize - (Instituto de Medicina Social/UERJ)

Mario Miranda - (advogado - INCT/InEAC)

Claudio Salles (Jornalista - INCT INEAC)

Martinho Braga Batista e Silva - (IMS-UERJ)
Mariana Baltar - (PPGCine-UFF)

Rômulo Bulgarelli Labronici (INCT-InEAC/UFF)

Rodrigo de Araújo Monteiro 0 (Ciências Sociais UFF Campos)

Leonardo Vieira Silva - (INCT-InEAC)

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues - (Instituto de Medicina Social/Uerj)

Carina Santos - (prof sociologia rede estadual/PPGA/INEAC)

Horacio Federico Sivori - (Instituto de Medicina Social/Uerj)

Julita Lemgruber - (diretora do CESEC/UCAM)
Silvia Ramos - (coordenadora do CESEC/UCAM)

Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco - (IESP/UERJ)

Doriam Borges - (LAV/UERJ)

Fernando Henrique Cardoso Neves - (mestrando PPGSD/UFF)

Henyo Trindade Barretto Fº - (Deptº de Antropologia/UnB)

Patrícia Melo Sampaio - (Deptº de História - UFAM)

João Velloso - (Fac. of Law, University of Ottawa, Canada)

Gentil Corazza - (Professor titular UFRGS)

Cristovão Fernandes Duarte - (Coordenador do Mestrado Profissional em Arquitetura Paisagistica PROURB/FAU/UFRJ)

O site do InEAC desponibiliza aqui o post do Facebook de Rosiane Rodrigues, pesquisadora no Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos e que também foi publicado no site DCM - Diário do Centro do Mundo: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/chamei-o-cacula-filho-partir-de-hoje-acabou-esse-papo-de-acreditar-que-temos-direitos/#.Wo21xeAK8ZJ.facebook

“Chamei o caçula: filho, a partir de hoje acabou esse papo de acreditar que temos direitos”.

Chamei o caçula, expliquei a situação e fiz todas as recomendações:

“Filho, a partir de hoje acabou esse papo de acreditar que temos direitos. Estamos sob intervenção militar. Isso significa que se um cara do exército cismar com a tua cara, eu não tenho a quem recorrer. Não tem ministério público, não tem nada, não tem justiça, entendeu??
O Rio está sendo governado por um general que não dá satisfação nem para o governador, nem para ninguém. É ele quem decide o que fazer, com quem fazer e aonde fazer. É uma ditadura.

Você não sabe o que é, mas vai entender…. então, você tem 13, mas parece que tem 16 e tem cara de pobre porque você é negro. A gente mora na CDD… Entendeu? Não pode sair sem documento. Está proibido de usar boné, short de tactel e casaco de capuz.

Está proibido de fazer algazarra com seus colegas na volta da escola. Proibido blusa do Flamengo ou de qualquer outro time…. Se você for parado, chame o soldado de senhor, mesmo que ele aparente ter a sua idade. E não faça nenhum movimento brusco. Eu preciso de você vivo, meu filho”.

Não dá para relativizar com a vida dos nossos.

Terça, 27 Fevereiro 2018 02:43

MANDADOS COLETIVOS DE BUSCA

O site do InEAC transcreve aqui artigo sobre "mandados coletivos de busca" escrito pelo professor Jorge da Silva (cientista político. Doutor em Ciências Sociais pela UERJ e professor-adjunto / pesquisador-visitante; Professor conteudista do Curso EAD de Tecnólogo em Segurança Pública (UFF - CEDERJ / CECIERJ).

 

Sobre MANDADOS COLETIVOS DE BUSCA

Há quatro anos, no momento em que se anunciava o emprego do Exército na Maré, publiquei no blog postagem que transcrevo adiante. Transcrevo-a a propósito da intenção do governo de tornar possível a utilização pelos militares de mandados de busca coletivos, como se lê em manchete do jornal O Globo de hoje, 20/02/18. Primeiro, a transcrição, que aí vai:

EXÉRCITO NA MARÉ (26 de março de 20/14)
Uma notícia contida em chamada de primeira página de O Globo de hoje, 26/03/14, sobre a ocupação militar da Maré chamou a minha atenção: “Os militares devem atuar com mandados coletivos de busca, que permitam que qualquer casa seja vasculhada”. Estranhei a notícia e fui conferir no interior da matéria, na pág. 13, e lá estava a fonte logo no título: “Forças têm mapa da Maré, diz procuradora”, e no subtítulo: “Representante do Ministério Público Militar afirma que tropas contarão com mandados de busca coletivos”.

A revelação partira da procuradora do MP militar, xxxxxxxxxxxxxxx. Segundo os repórteres que assinam a matéria, “a possível expedição pela Justiça Militar dos mandados coletivos, explicou a procuradora, deve-se à dificuldade de localizar endereços em meio ao aglomerado de casas erguidas em becos, sem numeração definida”.

Fiquei preocupado por dois motivos: primeiro, pelo tamanho do bairro da Maré (bairro desde 1994) e pelas afirmações da procuradora, e segundo, pelas complicações constitucionais e legais. Explico-me.

A população do conjunto de comunidades que compõem o bairro da Maré é de 130 mil moradores. Para que se tenha ideia, dos 5.570 municípios brasileiros, 5.350 possuem população inferior à da Maré, incluídos os do Estado do Rio de Janeiro. Quanto às complicações constitucionais e legais, pode ser que eu esteja desatualizado, mas até onde eu saiba, em qualquer das hipóteses autorizadas pela Constituição e a Lei Complementar sobre o tema (Estado de Defesa, Art. 136 da CF; Estado de Sítio, Art. 137; Intervenção Federal, Art. 34, III; e pedido do governo do Estado membro), o emprego das Forças Armadas deve ser precedido de ato formal do presidente da República, especificando as condições do emprego e as garantias constitucionais do Art. 5º que estariam eventualmente suspensas. Com relação aos mandados de busca, não sei se mudou, mas tanto o Código de Processo Penal comum (CPP) quanto o Código de Processo Penal Militar (CPPM) vedam ao juiz, sob pena de abuso de poder, a expedição de mandados genéricos, coletivos (o bairro da Maré possui cerca de 40 mil domicílios…). O CPP exige que o mandado indique, “o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência”, e o CPPM, além de exigir o mesmo, manda o executor exibir e ler o mandado.

Bem, é possível que a posição da procuradora reflita as representações distorcidas sobre aquele e outros locais similares. Ela não deve ter lido o GUIA DE RUAS MARÉ 2012. Saberia que todas as ruas possuem CEP, e a quase totalidade das casas possui numeração (vale a dica para os repórteres…).

Outro motivo da estranheza é ter sido justamente um membro do Ministério Público, instituição incumbida da defesa da cidadania e dos interesses difusos e de coletividades, a justificar a medida, sem decretação de “estado de defesa” e suspensão de direitos fundamentais por ato presidencial.

Retiro tudo que disse acima se o ordenamento constitucional-legal tiver sido mudado sem que eu tenha tomado conhecimento, e se o Manual ‘Garantia da Lei e da Ordem’, GLO, aprovado por portaria do Ministério da Defesa, não tiver ido além do que a Constituição e as leis do País vedam.

PS. Não sei por que estou preocupado com esses detalhes. Não moro na Maré.
(março 26th, 2014)
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Agora concluo:
Uma coisa é apoiar as Forças Armadas na luta da sociedade contra facções, milícias e a bandidagem em geral; outra é o imperativo de, ao mesmo tempo, respeitar os moradores e suas famílias, no marco das garantias constitucionais dirigidas a todos os brasileiros, sobretudo no que diz respeito ao inciso XI do Art. 5º: “[...] a casa é o asilo inviolável do indivíduo”. Equação complexa, mas desafio, sim, aos serviços de inteligência e investigação.

E faço uma observação lateral, em colaboração:
Diz respeito ao poderio armado das facções, com fuzis de guerra que entram no Brasil às toneladas, reclamação recorrente dos policiais. Daí, paralelamente ao esforço de repressão na ponta, é preciso estancar as fontes de abastecimento de armas e munição, e de drogas, o que é atribuição constitucional da União federal.

Ah! Ia me esquecendo do que, para mim, expõe a natureza de nossa sociedade. Noto que, entre as pessoas que defendem os mandados de busca coletivos, a esmagadora maioria, se não a totalidade, não reside em local "buscável".

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