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Quarta, 03 Novembro 2021 21:46

Iniciação Científica na Escola Pública: desafios e perspectivas

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O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo "Iniciação Científica na Escola Pública: desafios e perspectivas", escrito pelo antropólogo Marcos Veríssimo, pesquisador vinculado ao INCT/INEAC. O artigo foi publicado no BLOG CIÊNCIA E MATEMÁTICA do jornal O Globo - https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/iniciacao-cientifica-na-escola-publica-desafios-e-perspectivas.html 

Confira abaixo o artigo de Marcos Veríssimo.

 

Iniciação Científica na Escola Pública: desafios e perspectivas

Marcos Verissimo

“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação”. A afirmação contida nesta frase parece bastante atual em seu conteúdo, e por isso soaria verossímil que sua origem fossem as páginas dos jornais de ontem ou anteontem, ou o discurso de algum político do alto de seu palanque, ou até mesmo que tivesse sido pichada nos muros da cidade, como forma de denúncia. Acontece que, a despeito de sua atualidade, a frase é de 1932, e abre o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, libelo assinado por intelectuais de destaque na época, a exemplo de Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Roquette Pinto, entre outros.

 

É inútil ficar especulando se as razões da permanência do problema, após todas estas décadas, estariam na ineficiência do espírito reformista de gerações distintas de gestores educacionais ou no conhecido cinismo de nossos políticos profissionais, ou na (des)organização de ambos. Fato é que reformas continuam a ser propostas, bem como a ser ou não implementadas na prática, e os discursos assim estruturados continuam a angariar votos, à esquerda e à direita do espectro político brasileiro.

Em 1949, o sociólogo britânico Thomas Marshall, proferiu uma conferência na Universidade de Cambridge – posteriormente transcrita e publicada – na qual afirma, em suma, que os responsáveis legais de crianças em idade escolar deveriam ser obrigados pelo Estado a matriculá-los na escola. Seria Marshall um comunista? Não! Muito pelo contrário. Marshall era um liberal e, segundo seu ponto de vista, era necessária a universalização do acesso dos futuros cidadãos a um sistema de ensino capaz de muni-los de competências sociais e profissionais mínimas que os colocariam em pé de igualdade com os de sua geração na competição por bens escassos na sociedade de consumo e pelas posições mais favoráveis no mercado de trabalho.

Dito de outra maneira, para usar uma metáfora esportiva, o que legitima a meritocracia liberal é o fato de que o jogo começa empatado, zero a zero, e o acesso universalizado à escola é uma política pública de promoção da igualdade de oportunidades para que os sujeitos assim formatados possam competir na economia liberal, aí sim desigualando-se pelo mérito no mercado. Lembrando que Marshall tem a sociedade inglesa como base de seu trabalho. No Brasil, por outro lado, onde a urgência da importância da escola, da valorização do magistério, são mais fortes como discurso do que como prática e política pública, o resultado das políticas educacionais está distante de ser a garantia de que o jogo vá começar empatado para os educandos aí formados. Bastante distante.

São conhecidas as questões estruturais que fazem com que o estudante formado na escola pública comece a partida que é sua vida tendo já que virar o jogo, em desvantagem. Além disso, se observarmos, in loco, as formas pelas quais os conflitos são administrados nos espaços escolares da rede pública brasileira, veremos, não a reafirmação de valores igualitários e o estabelecimento e atualização de consensos que balizem a mediação das futuras contendas. Ao contrário, recentes etnografias realizadas em espaços escolares por pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), da UFF, têm demonstrado que o educando aprende aí a valorizar mais os argumentos de autoridade do que a autoridade dos argumentos. Ou seja, para navegar socialmente nos espaços escolares terá que aprender que cada macaco deve ficar no seu galho, e que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, entre outras lições que carregará para a vida.

É para um sistema público de ensino assim configurado que se dirige a mais recente proposta de reforma do Ensino Médio em bases nacionais, que teve origem nos tempos em que Michel Temer ocupou a presidência da república, e traz vários pontos controversos. Sua implementação gradual tem data para começar, no início do ano letivo de 2022, e há ainda muita indefinição e incerteza. A discussão democrática do tema tem sido feita nas escolas e casas legislativas. Representações sindicais docentes também já se manifestaram. Uma das controvérsias de mais relevo é o fato de que na grade de Ensino Médio proposta, das atuais disciplinas presentes em todos os três anos deste seguimento, apenas matemática e língua portuguesa manterão esta regularidade. Todas as outras seriam obrigatoriamente ofertadas apenas no primeiro ano, e depois diluídas, a depender ainda da escolha pela área das ciências que cada escola pode optar em dar ênfase. Grande parte da carga horária dos segundo e terceiro anos seria de atividades optativas que vão desde cursos ofertados à distância, ou por instituições particulares, até a elaboração de projetos de vida ou a participação em laboratórios de pesquisa multidisciplinares.

Claro que a diminuição da carga horária votada para o estudo das ciências humanas pode ser um golpe duro na formação de cidadãos críticos e autônomos, e que projetos como estes, não raro, descambam em verdadeiros sacos de maldades. Contudo, talvez seja o momento de propor formas inovadoras e não conformadas de exercer o magistério no Ensino Médio. Digo isso com base na experiência do Laboratório Escolar de Pesquisa e Iniciação Científica (LEPIC), sediado no Colégio Estadual Walter Orlandini, na cidade de São Gonçalo, e vinculado ao INCT-InEAC. Temos apoio do CNPq e da FAPERJ, por meio da concessão de bolsas de Iniciação Científica para estudantes da rede pública de ensino. Ali, estudantes se socializam nas práticas de pesquisa em redes internacionais de pesquisadores, e professores universitários vão à escola pública, não só para falar de suas pesquisas, mas para ouvir e orientar os pesquisadores iniciantes.

Em 2020, ano em que as escolas públicas ficaram fechadas por conta da pandemia desde o mês de março até o final do ano letivo, os pesquisadores iniciantes do LEPIC e de outras dez escolas estaduais distribuídas em diferentes municípios fluminenses, participaram de projeto de Feira de Ciências realizado pelo INCT-InEAC, com apoio do CNPq, que culminou com a produção do podcast Conflitos e Diálogos: Pesquisas Escolares, contendo 20 episódios disponíveis no Spotfy e outros tocadores (https://open.spotify.com/show/14Uf9Rr1SYOktOGnHBrwKu). Ali, ao mesmo tempo em que se habituavam a se expressar em público, apresentam o resultado de seu trabalho orientado, aprendido na escola e financiado por agências institucionais de fomento à pesquisa e ao desenvolvimento da ciência.

Talvez o melhor tratamento para o antigo problema nacional da educação passe, ao menos em parte, por levar a sério a inclusão de atividades orientadas de pesquisa no Ensino Médio como prática docente possível a professores para isso qualificados. Assim estaremos estimulando e desenvolvendo desde cedo o senso crítico e a reflexividade dos alunos e pavimentando os caminhos acidentados entre a escola pública e a universidade pública, onde poderão se preparar adequadamente para um futuro profissional com horizontes mais amplos. 

Marcos Verissimo é antropólogo, professor de sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, pesquisador associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br), coordenador do Laboratório Escolar de Pesquisa e Iniciação Científica (LEPIC).
 
 
 
 
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